Lula encontra no STM um aliado para a pacificação com as Forças Armadas
O novo presidente do tribunal tem atuado para dissolver o clima de desconfiança que se instalou entre os fardados. A missão, no entanto, não é fácil
Aos poucos, Lula vai aparando as arestas com as Forças Armadas e encontra no Superior Tribunal Militar um aliado para a pacificação — mesmo assim, a missão é difícil
Aos poucos, graças a muita conversa de bastidores, o nó que se criou entre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os militares começa a ser desatado. Nessa semana, o presidente teve mais dois encontros públicos com integrantes das Forças Armadas, cujo objetivo principal era sinalizar à caserna que o Planalto está disposto a construir pontes, agora que a poeira dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro começa a assentar. Na terça-feira, na condição de comandante em chefe, Lula participou da cerimônia de nomeação de 56 novos oficiais das três armas e, no dia seguinte, almoçou com a cúpula do Exército. Os eventos foram estrategicamente pensados pelo Ministério da Defesa para demonstrar que algumas reivindicações feitas à pasta, como o investimento em projetos estratégicos e novos equipamentos, poderão ser atendidas, mas que a politização dos quartéis não será mais tolerada.
Até o momento, a bandeira branca tem sido bem recebida pelos dois lados. O governo demonstra não estar disposto a levar adiante uma Proposta de Emenda Constitucional para alterar o polêmico artigo 142 da Carta Magna, que costuma ser erroneamente interpretado pela turba golpista para justificar uma intervenção militar no país. Já os generais indicam que não devem se opor ao Projeto de Lei que obriga os egressos das tropas a ir para a reserva se quiserem se candidatar a um cargo eletivo. “O caminho agora é o da pacificação e o governo vem dando sinais positivos para o Alto-Comando. A aproximação está, de fato, acontecendo”, disse a VEJA um oficial de alta patente.
Um desses sinais vem do Judiciário. O novo presidente do Superior Tribunal Militar, o Tenente-Brigadeiro do Ar, Francisco Joseli Parente Camelo, tem atuado para dissolver o clima de desconfiança que se instalou entre os fardados desde que o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes determinou que os ataques aos três poderes da República deverão ser julgados pela Justiça comum. A decisão monocrática, tomada no fim de fevereiro, se baseou em depoimentos de servidores ouvidos na Operação Lesa Pátria que narraram em detalhes a inação e conivência das tropas do Exército diante dos atos de vandalismo. Entre os depoentes está um integrante do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão responsável pela segurança do Planalto, que no governo anterior era comandado pelo general Augusto Heleno, um dos mais fiéis apoiadores de Jair Bolsonaro (PL). Em grupos de WhatsApp oficiais da ativa chegaram a classificar a medida como “massacre da legalidade”, “vergonha nacional” e “insulto à lei”.
A operação panos quentes apoiada por Camelo, que mantém uma relação de certa proximidade com Lula pelo fato de ter sido piloto do avião presidencial durante os mandatos anteriores do petista, busca convencer os mais exaltados de que a transferência de competência para um tribunal civil é benéfica. Isso porque a decisão desobrigaria os militares a agir contra seus próprios pares. Lula prestigiou a posse do novo presidente da Corte e os dois conversaram na terça-feira. Mais uma vez, o papo girou em torno da pacificação. “É possível que, durante o transcorrer das investigações, se conclua que alguém possa ter incorrido em crime militar. Nesse caso, estou seguro de que o processo será direcionado à Justiça Militar. Em nenhum momento, o ministro Alexandre de Moraes invadiu a nossa competência”, assegura Camelo. Até o momento, pelo menos oito inquéritos que vão redundar em processos foram transferidos do Ministério Público Militar para a Polícia Federal. Dentro do tribunal, a estratégia de Camelo tem recebido apoio de seus pares. “A atração para uma única corte tem a intenção de unificar os julgamentos. Não há queda de braço, o que seria inconcebível em regimes democráticos”, corrobora a ministra do STM Elizabeth Rocha, uma dos cinco civis a integrar o tribunal, ao lado de dez oficiais.
Embora a receptividade tenha sido boa em alguns círculos, isso não significa que o caso entrará em fogo brando. A mudança de tribunal tornará, sem dúvida, o julgamento menos corporativista e, portanto, com maiores chances de condenações de militares. Levantamento exclusivo realizado por VEJA, ao longo de uma década, revela um número excessivamente baixo de oficiais processados no STM. Entre 2012 e 2022, apenas 84 casos envolvendo as mais altas patentes das Forças Armadas chegaram ao plenário. Desde sua criação, há 215 anos, a Justiça Militar jamais condenou um general, sendo que, no período analisado, só oito ocupantes de cargos do topo da hierarquia das três Forças foram processados. No mesmo período, dois coronéis, um único tenente-coronel e um major tiveram o martelo batido contra si (veja o quadro). A clemência costuma ser menor com subalternos: tenentes e capitães somam 62 condenações.
Na maioria dos casos, a Justiça Militar atuou a posteriori, punindo integrantes das Forças Armadas que se envolveram em crimes comuns, fora do exercício de função — o tráfico de drogas é o mais recorrente. Eventos relacionados exclusivamente à atividade são bem mais raros e parte considerável das denúncias nem sequer chega a julgamento. Nos últimos cinco anos, o Ministério Público Militar arquivou 116 processos e apresentou somente dezenove denúncias. “O fato de os processos tramitarem em sigilo dificulta o acesso ao teor das conclusões”, explica Carina Gouvêa, pós-doutora em direito constitucional que se dedica ao tema.
Mesmo com o esforço envolvido, evidentemente, alguns sobressaltos ainda vão acontecer na relação entre Lula e os militares. Na quarta-feira, a Procuradoria-Geral da República concluiu os trabalhos em torno dos atos de 8 de janeiro, ajuizando denúncias contra mais 203 pessoas que estavam acampadas na frente do quartel do exército, em Brasília. No total, 1 390 participantes responderão pela tentativa fracassada de golpe. No governo, impedir que esse episódio nefasto passe impune é tido como questão de honra, mas ainda há incertezas sobre a reação nos quartéis, já que muitos parentes de oficiais estão entre os suspeitos e podem ter de responder criminalmente. Na quinta, a gestão petista pediu a retirada de um projeto que isentava militares de punição em operações de Garantia da Lei e da Ordem. Como se vê, não será nada fácil diminuir a tensão na caserna.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2023, edição nº 2836