Líder das projeções de intenção de voto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) derrapou feio em alguns discursos entre a pré-campanha e a largada da disputa presidencial. Falando quase sempre de improviso, como se acostumou em cinco décadas de carreira política, já se indispôs com eleitorados importantes por causa de suas gafes. Uma delas atingiu em cheio a classe média: em abril, na Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, em São Paulo, ele declarou que essa parcela da sociedade brasileira “ostenta um padrão de vida que nenhum lugar do mundo a classe média ostenta”. Com a repercussão negativa, Lula criou um problema a ele, porque, apesar de ter encolhido na pandemia, essa faixa ainda representa 41% do eleitorado, segundo projeção do Datafolha. Problema maior ainda porque terá de se voltar a ela agora, já que seu principal adversário, o presidente Jair Bolsonaro (PL), ensaia uma recuperação nas pesquisas, em boa parte amparado pelo avanço nesse segmento.
O trabalho não será fácil porque a performance de Bolsonaro nesse estrato do eleitorado é significativa. Entre os brasileiros que ganham de cinco a dez salários mínimos, por exemplo, o presidente tem 47% das intenções de voto contra 34% do petista, conforme o Datafolha. Já entre aqueles com renda entre dois e cinco salários mínimos, ele ultrapassou Lula em agosto (veja o quadro). Apesar da gestão errática de Bolsonaro, o apoio das duas faixas ao presidente se mantém similar ao da véspera do primeiro turno de 2018, quando o então deputado marcou 41% entre dois a cinco salários mínimos e 51% na camada logo acima. Outro dado ruim para Lula: ao contrário da média nacional, a rejeição a ele nessas faixas supera a do seu oponente — entre quem ganha de cinco a dez salários mínimos, ela chega a 56%.
A cobiça petista pelos votos da classe média não se baseia tão somente no desempenho de Bolsonaro, mas também em uma pesquisa interna do PT, concluída há três semanas, que mostrou que há um contingente de 9% de eleitores indecisos que consideram votar no petista. Entre estes, há forte presença da classe média, sobretudo eleitores com renda acima de 5 000 reais mensais, e religiosos, principalmente evangélicos, outro campo em que a campanha tenta avançar. A meta é consolidar ao menos um terço desse eleitorado, que seria fundamental para a pretensão — cada vez mais difícil — de liquidar a fatura já no primeiro turno.
O discurso de Lula para conquistar esse segmento terá, claro, de mudar. Sairá a crítica à ostentação e entrará a preocupação com as angústias da classe média. Um dos temas que devem ser explorados é o da atualização da tabela do imposto de renda. O petista avalia ampliar a faixa de isenção a quem ganha até 5 000 reais mensais (hoje é de 1 903 reais), uma antiga reivindicação dessa parte da população e que pode render dividendos nas urnas por ser vista como uma promessa eleitoral descumprida por Bolsonaro. Também está na pauta a proposta de criar meios para atenuar o endividamento das famílias e facilitar o pagamento de seus débitos. O problema é, de fato, imenso: levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) apontou que em julho 78% das famílias brasileiras estavam endividadas e 29% delas tinham contas atrasadas.
Enquanto em uma ponta a campanha acenará com iniciativas para aliviar as despesas, na outra vai se esforçar para tentar aumentar a renda. Uma das propostas centrais será a retomada da política de ganho real do salário mínimo (reajuste acima da inflação) e a sinalização de aumentos salariais ao funcionalismo público (um setor importante da classe média) à medida que a economia se recupere. Ainda está na agenda de Lula diversificar a atuação do BNDES, ampliando o financiamento a pequenos e médios empreendedores. A lógica econômica por trás de todas essas medidas já foi vista nos governos do PT, sobretudo quando a economia crescia na casa dos 7% ao ano, e não sai da boca de Lula: o estímulo ao consumo, visto como chave para a indução do crescimento econômico. “À medida que se amplia o consumo, se força o crescimento da produção, de outras atividades integradas e o país cresce, gera renda e emprego”, diz o ex-governador do Piauí Wellington Dias, um dos coordenadores da campanha.
A relação da classe média com o PT, assim como a com setores do empresariado, se estreitou a partir da eleição de 2002, quando Lula se apresentou ao país em tons mais moderados e pragmáticos do que nas eleições perdidas entre 1989 e 1998. “Lula sacou isso muito bem, montando um ministério com segmentos avessos ao PT, incluindo empresários. Ele levou ao governo as diferentes configurações da sociedade”, lembra o cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, da FGV. Com a alta das commodities a impulsionar a economia, com geração de emprego e renda, um dos fenômenos econômicos dos anos Lula foi a ascensão da chamada “classe C”, um contingente de 35 milhões de pessoas que fez a classe média subir de 38% para 53% da população entre 2002 e 2012. O “boom social” virou pó, no entanto, com a forte recessão dos últimos anos de Dilma Rousseff, que colocou a perder os avanços anteriores e se transformou em uma pedra no sapato de Lula para 2022.
As boas memórias de seus já longínquos governos, contudo, podem influenciar o escrutínio do governo Bolsonaro, que agiu mal na pandemia e está às voltas com problemas concretos como o aumento de preços. “A nova classe média é bastante pragmática e menos ideológica do que a classe média tradicional, que era mais conservadora, foi base do lacerdismo, do udenismo e apoiadora do golpe”, diz o cientista político e sociólogo Antonio Lavareda. Bolsonaro, claro, também vai apresentar suas ideias para esse eleitorado, mas parte delas carrega uma certa desconfiança por já ter sido feita em 2018, como a do reajuste da tabela do imposto de renda, que o presidente voltou a incluir no seu programa de governo. Além de propostas mais amplas como estimular o crescimento econômico e a geração de empregos, Bolsonaro diz que vai reduzir a informalidade, que atinge 40% dos trabalhadores, e melhorar a qualidade dos empregos oferecidos, com a criação de contratos de trabalho diferenciados para categorias como motoristas de aplicativos — estes também alvos de Lula. Bolsonaro também fala em estimular o empreendedorismo por meio da desregulamentação e em intensificar programas de crédito a juros baixos para microempreendedores.
A ofensiva do PT vai começar já a partir da sexta 26, com o início da campanha eleitoral no rádio e na TV. Ao menos nos primeiros dias, o foco será lembrar os “tempos de Lula”. “Ainda há margem para crescer no primeiro turno, principalmente entre o eleitor que já votou em Lula e pode voltar a votar”, diz um interlocutor frequente do ex-presidente. Os programas eleitorais da campanha de Lula, que serão parte do esforço para aproximá-lo da classe média, são tocados pelo marqueteiro Sidônio Palmeira, mas o bureau de comunicação inclui o ex-ministro Edinho Silva e o deputado Rui Falcão (SP), enquanto a coordenação do plano de governo cabe ao ex-ministro Aloizio Mercadante. A tentativa de sedução da classe média vai focar o período entre 2003 e 2010 e esconder os anos finais de Dilma e o que pensava o próprio Lula até três meses atrás. Resta saber se vai funcionar.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804