Lula radicaliza discurso e ataca as reformas para agradar à militância
Com duros ataques às privatizações, o pré-candidato mostra predileção por agenda econômica que levou à inflação, à recessão e ao desemprego
Aqueles que pensavam que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pudesse adotar neste começo de ano eleitoral um discurso agregador, com um tom mais parecido com o da campanha de 2002, quando fez uma série de acenos ao mercado para vencer a disputa, precisa corrigir as expectativas. Só nos últimos dias, por duas vezes, ele fez duras críticas às privatizações e disse que o mercado deveria evitar a compra de ações da Eletrobras, estatal responsável por 30% da energia do país, cujo processo de desestatização passou a caminhar após o aval do Tribunal de Contas da União (TCU) e dos acionistas da empresa, na última terça, 22. “Os empresários que tiverem juízo, é importante contarem até dez antes de fazer a loucura que é comprar a Eletrobras a preço de banana”, disse.
A fala, em tom de ameaça, veio na esteira de outras nas quais o ex-presidente manifestou predileção por uma agenda econômica que, em um passado recente, levou à inflação, à recessão e ao desemprego. Nos anos petistas, os assaltos aos caixas das estatais revelados nos escândalos do mensalão e do petrolão também mostraram a hipocrisia do discurso de apego ao Estado grande a pretexto de desenvolver a economia e proteger o patrimônio nacional. A respeito da Petrobras, aliás, Lula promete agora alterar a política de preços de forma a reduzir artificialmente o valor dos combustíveis e conter a inflação. Ele rejeita privatizar a estatal, que no seu governo foi saqueada em bilhões de reais por meio da ação de dirigentes corruptos. Além da oposição às privatizações, Lula fez recentemente ataques agudos à reforma trabalhista, garantindo que fará uma revisão do que foi aprovado em 2017 no governo Michel Temer. O petista investiu ainda contra a reforma da Previdência, feita já com Jair Bolsonaro, e se mostrou contrário ao teto de gastos, criado para conter o crescente endividamento público herdado do governo Dilma Rousseff.
Essa pregação de Lula na atual campanha parece um contrassenso, já que vem do mesmo político empenhado em construir pontes com partidos de centro. O movimento é personificado na figura de seu (quase certo) vice, Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo pelo PSDB. O namoro avançado com o ex-tucano, que vem sendo exibido como uma espécie de garantia de moderação em um futuro governo petista, não é o único gesto de aproximação com setores políticos mais ao centro. Outro exemplo é o flerte com Gilberto Kassab, o cacique do PSD cujo apoio ao PT em um segundo turno é tido como certo (e talvez ocorra já no primeiro). Lula tem investido até em encontros com outros tucanos históricos, como os ex-senadores Aloysio Nunes e Arthur Virgílio.
Mas o fator Alckmin, por paradoxal que pareça, ajuda a entender o tom radical de Lula, quase como um peso que obriga à adoção de um contrapeso. A aproximação ocorreu sob protestos de alas radicais do partido e de aliados como o PSOL, que veem o risco de um governo moderado demais diante das agendas que consideram prioritárias. Por isso, para seguir em frente no plano Alckmin, Lula precisa acender uma vela para cada santo: enquanto emite um sinal ao público externo com o vice conservador, para o interno acentua a ênfase na defesa das atrasadas bandeiras da esquerda. “O discurso demonstra um reconhecimento de que a saída para a crise passa por enfrentar os dogmas do mercado em torno das reformas neoliberais”, acredita o presidente do PSOL, Juliano Medeiros.
É difícil prever daqui para a frente os efeitos eleitorais desse contorcionismo político. Afinal, em qual versão confiar: no Lula que se aproxima de Alckmin ou no Lula que ataca o sistema financeiro, conforme fez em entrevista a uma rádio no dia 17 de fevereiro? “Não vou pedir voto para o mercado”, bradou. A despeito das dificuldades embutidas nesse jogo de acenos em direções conflitantes, o entorno de Lula continua confiante no sucesso da tática, com base na crença agora de que ele não terá de fazer tantos acenos ao mercado e à classe média, como ocorreu no passado. “Lula tem duas cartas aos brasileiros agora. Uma é seu próprio mandato, que não provocou rupturas e gerou crescimento. Outra é uma carta de carne e osso, o Alckmin”, disse a VEJA um de seus auxiliares, em referência ao manifesto de 2002 no qual o então candidato prometia moderação na economia e respeito aos contratos nacionais e internacionais. Para a campanha deste ano, o PT mantém na Fundação Perseu Abramo um grupo com cerca de trinta economistas elaborando propostas para um eventual governo, mas o que será levado aos eleitores vai depender de como avançarão as articulações. “Estamos fazendo o diagnóstico sobre o cenário econômico, mas a definição das propostas do plano de governo é política e será decidida em discussão do PT e de aliados”, afirma Guilherme Mello, professor da Unicamp que coordena o grupo.
Há também quem enxergue na língua afiada do petista, para além de um simples discurso de candidato de oposição, uma estratégia a fim de criar instabilidade econômica e prejudicar o governo. Uma melhora nessa área poderia beneficiar Bolsonaro, já que a economia será o tema principal da eleição. A inviabilização da privatização da Eletrobras, por exemplo, significaria uma derrota com consequências eleitorais desfavoráveis ao presidente. Também seria mais um revés na longa história de contratempos da privatização no Brasil. Desde que Fernando Collor colocou a Usiminas à venda, em 1991, grupos de esquerda sempre gritaram contra esse tipo de ação. Na eleição de 2006, o hoje neoaliado Alckmin, então rival de Lula, teve de usar até um colete com a logomarca de estatais para dizer que não daria sequência à política de privatizações de FHC. A estratégia foi incompreensível porque as desestatizações tocadas pelo PSDB propiciaram um salto de qualidade em serviços como telefonia, energia e transportes. Infelizmente, as privatizações não andaram com Temer e vivem um novo fiasco sob Bolsonaro.
Antiga ocupante da lista de prioridades no processo de desestatização, a Eletrobras virou alvo do PT imediatamente após a aprovação da venda pelos acionistas. No mesmo dia, o partido entrou com um mandato de segurança no STF para tentar suspender o processo. Se o objetivo de Lula era criar alguma instabilidade com a ameaça aos prováveis investidores da Eletrobras, não conseguiu até o momento, porque não houve desespero nos mercados como ocorria em outras eleições toda vez que Lula flertava com o desatino. Para os rivais, no entanto, as propostas do petista não deixam de sinalizar um caminho para o desastre. “É essa a agenda do Lula para o Brasil”, ironiza Marco Vinholi, presidente da seção paulista do PSDB e um dos coordenadores da campanha de João Doria ao Planalto.
É verdade que o petista continua favorito à corrida presidencial, mas uma candidatura de terceira via pode ganhar tração com uma aliança entre PSDB, MDB, União Brasil e outros partidos de centro (veja entrevista na pág. 38). Além disso, Jair Bolsonaro, depois de seguidos reveses em pesquisas, comemorou a primeira boa notícia na última quarta, 23, quando apareceu numericamente à frente de Lula na sondagem espontânea (34,3% a 33,3%) em um levantamento do Instituto Futura para o banco Modal. O prognóstico é o de uma disputa duríssima daqui para a frente e a pregação de retrocesso econômico do petista promete se tornar um território rico a ser explorado pelos adversários ao longo da campanha.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778