Primeiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu adiar o cumprimento de uma pena de oito anos e dez meses de prisão ao ganhar a liberdade após 580 dias no cárcere em Curitiba em razão do fim da prisão em segunda instância. Depois, mudou a sua condição de barrado pela Lei da Ficha Limpa, que o impediu de disputar a Presidência da República em 2018, para candidatíssimo e um dos favoritos nas pesquisas para 2022, com a anulação de suas condenações pela Justiça. Agora, o petista está empenhado em uma terceira ofensiva: recuperar o patrimônio pessoal bloqueado pela Justiça. A fatia em discussão é de 6,39 milhões de reais, entre imóveis, veículos, aplicações financeiras e saldos bancários. O campo de batalha é o mesmo onde obteve as vitórias anteriores, o STF. Nos pouco mais de três meses desde que o ministro Edson Fachin anulou as sentenças contra ele nos processos que tramitavam ou tinham passado pelo Paraná, a defesa de Lula protocolou três pedidos para liberar seus bens. O patrimônio do petista quase quadruplicou desde que ele deixou a Presidência, em 2011, e o desafio de seus advogados é provar que essa evolução é lícita, algo que tem sido feito com alguma dificuldade desde que ele entrou na mira da Lava-Jato. A principal argumentação é a de que a maior parte que amealhou é oriunda de palestras proferidas por ele após ter deixado o comando do país e em relação às quais as investigações da Polícia Federal não apontaram nenhum crime.
A maior parte do valor estimado do patrimônio bloqueado corresponde à metade do que possuíam Lula e Marisa Letícia, casados em comunhão universal de bens (ela morreu em 2017). A outra metade, conforme o inventário apresentado à Justiça, será dividida igualmente entre os quatro filhos: Fábio Luís, Marcos Cláudio, Sandro Luís e Luís Cláudio. Encontra-se indisponível o quinhão do ex-presidente em três apartamentos, um sítio e um terreno em São Bernardo do Campo, veículos, dois planos de previdência privada e pouco mais de 600 000 reais em bancos (veja o quadro). Lula já havia conseguido junto à Lava-Jato o desbloqueio de uma conta no Bradesco na qual recebe a pensão, com cerca de 63 000 reais (em 2017), e valores equivalentes a quarenta salários mínimos (em 2020). A juíza Gabriela Hardt autorizou também a liberação de metade dos valores retidos, relativa à “meação” da ex-primeira-dama, mas a decisão ainda não teve efeito porque não transitou em julgado. “A parte substancial de valores continua bloqueada”, reclama Cristiano Zanin Martins, advogado do ex-presidente.
A nova batalha de Lula, mais do que para anular o que foi imposto pela Lava-Jato, visa a garantir o próprio direito de defesa, segundo argumento apresentado nas três ações junto ao STF — ou seja, o petista jura não ter como arcar com os custos de seus advogados e seus processos. Zanin não dá detalhes de sua relação contratual com Lula, mas a assessoria do petista afirma que “assim que possível, o ex-presidente vai retomar o pagamento do custeio da sua defesa”. Dinheiro, porém, não é exatamente hoje um dos maiores problemas do ex-presidente. Enquanto o STF não toma uma decisão, ele embolsa um salário de 30 421 reais mensais que recebe do PT enquanto presidente de honra da legenda, sob o regime da CLT, e uma pensão de anistiado político de cerca de 6 000 reais. Lula mora em um apartamento em São Bernardo do Campo com a noiva, Rosângela da Silva, imóvel que não está entre seus bens — pessoas próximas não dão detalhes sobre a propriedade da moradia. “Ele é muito modesto, tem uma vida simples”, garante Paulo Okamotto, ex-presidente do Instituto Lula, com aquela dose de exagero de quem é amigo do petista de longa data.
Depois de se livrar do ex-carrasco Sergio Moro, a agonia de Lula em sua terceira batalha na Justiça tem um novo nome: Luiz Antônio Bonat, o magistrado que comanda a 13ª Vara Federal de Curitiba. A sua defesa sustenta ao ministro Edson Fachin que o juiz desrespeita a Corte ao manter o bloqueio dos bens depois de o STF considerar que os processos contra Lula não poderiam tramitar no Paraná. Bonat determinou há dois anos o arresto de até 77 milhões de reais em bens do petista no processo sobre o suposto recebimento da Odebrecht de um apartamento em São Bernardo do Campo e um terreno que abrigaria o Instituto Lula. O reconhecimento de que a vara de Curitiba não tem jurisdição sobre os casos de Lula foi o pressuposto para que as decisões fossem anuladas, inclusive os recebimentos das denúncias — se os bloqueios foram decretados nesse momento, diz a defesa, eles não poderiam mais estar de pé. Ao Supremo, o juiz argumenta que não afrontou a decisão da Corte. A PGR já se manifestou contra um dos pedidos.
Embora o esforço dos advogados seja no sentido de garantir uma vitória completa sobre as decisões da Lava-Jato, o ex-presidente não pode comemorar o fim de suas encrencas com a Justiça. Os quatro processos anulados pela decisão de Fachin no STF foram para Brasília — onde já tramitavam quatro ações da Zelotes — e vão recomeçar a partir das provas colhidas pelo MPF. Ali, Lula poderá ser cobrado novamente a explicar bens atribuídos a ele pela Lava-Jato, como os notórios tríplex do Guarujá, que seria propina da OAS, e o sítio em Atibaia, utilizado pelo ex-presidente e que recebeu melhorias de empreiteiras com contratos com a Petrobras. Somados, esses dois endereços são avaliados em quase 4 milhões de reais. A única certeza daqui para a frente é que o patrimônio do petista seguirá como assunto dos tribunais ainda por um bom tempo.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742