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Maior julgamento da história do STF passa a limpo os ataques golpistas

Cem dias depois dos atos promovidos por apoiadores de Bolsonaro, os primeiros envolvidos começam a ir para o banco dos réus

Por Laísa Dall'Agnol Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Bruno Caniato, Victoria Bechara Atualizado em 4 jun 2024, 10h52 - Publicado em 21 abr 2023, 06h00
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  • O funcionário da Sabesp Aécio Lúcio Costa Pereira, 51 anos, saiu de Diadema, na Grande São Paulo, e viajou mais de 1 000 quilômetros até Brasília. No dia 8 de janeiro, usando uma camiseta com a inscrição “intervenção militar federal”, juntou-se à turba de extremistas que protagonizou um dos mais deprimentes episódios da história da República, com ataques às sedes dos Três Poderes, em tentativa de golpe contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na invasão do Senado, Pereira ocupou orgulhoso um lugar na mesa diretora, de onde gravou um vídeo. “Estamos aqui, porra! Vai dar certo, não desistam!”, bradou. Para ele, porém, nada deu certo. Na terça 18, ele não só completou 100 dias no cárcere como virou o primeiro daquela horda a sentar-se no banco dos réus — acusado de associação criminosa e tentativa de golpe, entre outros crimes, pode pegar até 25 anos de prisão.

    Aécio é um dos 1 390 denunciados pelo Ministério Público Federal em quatro inquéritos que apuram os crimes cometidos em Brasília. Ele está na primeira leva de 100 casos analisados pelo relator, o ministro Alexandre de Moraes. O julgamento, feito por meio virtual, é o maior em número de denunciados da história de mais de dois séculos do STF, superando com folga o do mensalão, que teve quarenta denunciados. Na noite da última quarta 19, o Supremo já havia formado maioria pela condenação dos 100 primeiros casos de envolvidos no 8 de janeiro, com 6 votos, de um total de 10 possíveis. Na próxima segunda, 24, uma outra leva, de 200 denunciados, começa a percorrer o mesmo caminho. Os acusados dessa primeira fornada foram investigados em dois inquéritos: os de números 4921 (partícipes por instigação) e 4922 (autores intelectuais e executores). Há ainda outros dois: o 4920 (financiadores) e o 4923 (autoridades do estado responsáveis por omissão).

    arte cem dias prisão

    O gigantismo do julgamento é consequência direta da magnitude da empreitada golpista, que terminou com 2 151 detidos pela polícia. Uma pequena parte conseguiu se livrar de investigação, mas outros não tiveram a mesma sorte, em especial os 172 homens e 79 mulheres que estão no complexo penitenciário da Papuda e da Colmeia, em Brasília, por onde já passaram bandidos perigosos como Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, chefe da facção criminosa PCC, e nomes da política como os petistas José Genoino e José Dirceu, condenados no mensalão.

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    Teve gente que até conseguiu sair da cadeia, mas segue em prisão domiciliar. Mais de 1 100 investigados estão tendo de se submeter a medidas como o uso de tornozeleira eletrônica, a apresentação semanal ou mensal a um juízo local e a proibições de entrevistas, acesso a redes sociais e contatos com outros envolvidos, sob o risco de voltarem para a cela. Preso e acusado de incitação ao crime e associação criminosa, o guarda municipal Franklin Lamóglia, 45, morador de Itajubá, no interior de Minas Gerais, por exemplo, faltou a uma apresentação em juízo em 28 de março e corre o risco de voltar à prisão. A defesa informou à Justiça que ele, por ironia, foi diagnosticado com transtorno de estresse pós-traumático, devido justamente ao medo de voltar às dependências da Papuda.

    Depois de terem ido a Brasília movidos por uma equivocada ideia de fazer história como “patriotas”, a maioria dos presos terá pouco do que se orgulhar em suas memórias do cárcere. O rosário de reclamações é extenso. Alimentação ruim, má qualidade de itens de higiene, falta de medicamentos e contato escasso com a família são algumas das queixas. Há superlotação na cadeia masculina (1 287 presos onde cabem 1 176), o que propicia celas onde há oito camas para vinte detentos — alguns dormem no chão ou se revezam com os colegas, muitas vezes em meio a goteiras. A turma tem direito a duas horas por dia de banho de sol e só toma banho frio — o mesmo tratamento, aliás, dado aos demais detentos. “São as mazelas do sistema prisional. Toda pessoa que é presa passa por essas privações”, pontua Gabriel Fonseca, da Defensoria Pública do Distrito Federal.

    quadro cem dias prisão

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    O dia a dia é pouco movimentado. Por questões de segurança e de logística, os presos do 8 de janeiro ficam separados dos demais e, de forma geral, são bem comportados — ocupam o tempo lendo, conversando ou participando de cultos e rodas de oração. Boa parte encontra-se na casa dos 40 e 50 anos, a maioria é de classe média e tem certo grau de escolaridade. Pelo fato de não terem um trabalho interno, como faxina e distribuição de marmitas, eles não têm direito a visitas íntimas. Recebimento de parentes é permitido a cada quinze dias, mas isso é algo raro porque a maioria é de fora do Distrito Federal. Há ainda outros motivos mais prosaicos. “Muitas presas se negavam a receber visitas, pois seus parentes teriam de se vacinar contra a Covid-19”, conta a defensora pública da União Manoela Maia.

    As condições dos presídios não são a única reclamação. A fragilidade de saúde de muitos dos detentos tem sido uma das preocupações da Defensoria — a avaliação é que muitos casos poderiam ser convertidos em medida cautelar, com tornozeleira eletrônica. Além disso, boa parte do grupo é de réus primários. “Defendemos que parte dessas pessoas possa pelo menos responder em liberdade”, diz o subdefensor público-geral Gustavo Ribeiro. Outro ponto levantado é o da falta de individualização das condutas. Em linhas gerais, os presos estão sendo processados em dois grupos: aqueles que foram detidos no quartel-general dos manifestantes, em frente ao Exército (imputados com crimes mais “leves”), e os da Praça dos Três Poderes, que respondem a acusações mais graves. “Como saber, em um universo de centenas de pessoas, o que cada um fez? ”, argumenta Ribeiro. A consulta do enorme processo, com 1 390 pessoas, é apontada como entrave ao trabalho da defesa, que muitas vezes não consegue ter acesso a vídeos e documentos por instabilidades no sistema causadas pelo número de acessos. O risco nesse tipo de caso é repetir o que houve com o julgamento do massacre do Carandiru, em São Paulo, em 1992, quando a Justiça chegou a anular uma condenação por não haver a individualização da conduta dos réus. Até hoje, aliás, nenhum agente de segurança foi preso pela chacina.

    CONTRAGOLPE - Lula, Flávio Dino e Moraes: ataque à democracia gerou resposta firme e uníssona das autoridades
    CONTRAGOLPE - Lula, Flávio Dino e Moraes: ataque à democracia gerou resposta firme e uníssona das autoridades (Evaristo Sa/AFP)

    Espera-se que o caso do 8 de janeiro não tenha o mesmo fim, sendo que a possibilidade de prisão por um longo período não é a única ameaça no horizonte dos investigados. Nas últimas semanas, a Advocacia-Geral da União entrou com ações para cobrar a conta pelas destruições. Os valores passam dos 150 milhões de reais. Em um desses processos, o órgão mira responsáveis por fretar os ônibus que transportaram parte da turma. “A partir da aglomeração de manifestantes é que se desenrolou toda a cadeia fática que culminou com a invasão e depredação de prédios públicos federais”, argumenta no processo Marcelo Eugenio Feitosa Almeida, advogado da AGU.

    O início do escrutínio pela Justiça do que aconteceu naquele dia em Brasília é um importante passo, mas não pode ser — e, ao que tudo indica, não será — o único. Nos seus votos, Alexandre de Moraes foi claro ao dizer que os atos tinham ligação direta com outros dois inquéritos no STF: um que apura fake news e o outro que investiga milícias digitais que promovem campanhas contra a democracia. Ele listou quase duas dezenas de parlamentares, alguns já sob investigação, cujas atuações contribuíram para a ofensiva golpista. A lista, majoritariamente ocupada por políticos do PL, inclui o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), além das deputadas Carla Zambelli (PL-SP) e Bia Kicis (PL-DF). “É EVIDENTE A EXISTÊNCIA DE CONEXÃO (assim, em letras maiúsculas) entre as condutas atribuídas na presente denúncia e aquelas investigadas no âmbito mais abrangente envolvendo investigados com prerrogativa de foro nessa Corte”, escreve Moraes.

    AÇÕES - Detidos no ato: financiadores e mentores também vão prestar contas
    AÇÕES – Detidos no ato: financiadores e mentores também vão prestar contas (Andre Borges/EFE)

    Os estilhaços do quebra-quebra golpista podem ir ainda mais longe. No último dia 14, Moraes determinou que o ex-presidente Jair Bolsonaro seja ouvido pela PF em inquérito que investiga os autores intelectuais do 8 de janeiro — a oitiva já foi marcada para o próximo dia 26. O ministro diz que o depoimento, pedido pela PGR, “é medida indispensável ao completo esclarecimento dos fatos investigados”. Antes disso, em 22 de janeiro, o corregedor do Tribunal Superior Eleitoral, Benedito Gonçalves, pediu esclarecimentos a Bolsonaro e ao ex-ministro Walter Braga Netto, seu vice na eleição, sobre a participação nos atos golpistas — isso integra a análise de dezessete ações que podem deixar Bolsonaro inelegível.

    O braço da lei não poderá alcançar mesmo apenas a turba que invadiu os palácios, porque o processo que desencadeou a barbárie é bem mais complexo. O 8 de janeiro representa o mais grave atentado contra a democracia brasileira desde o fim da ditadura, em 1985. O que se viu depois foram disputas de poder, ainda que polarizadas, dentro do modelo democrático. Para José Álvaro Moisés, cientista político da USP, o legado simbólico foi soar o alerta de que o país não está imune a tentativas de ruptura. “Nossas instituições se mostraram resilientes, mas a agressividade dos atos evoca a ideia de que a democracia é uma planta frágil que precisa de cuidados constantes”, avalia. Nesse sentido, o Brasil não é um caso isolado: a ascensão de movimentos de extrema direita que contestam a ordem democrática é um fenômeno global, cujo ápice foi a invasão do Capitólio, sede do Congresso dos EUA, em 2021, por grupos que refutavam a derrota de Donald Trump. A democracia brasileira mostra indícios de vulnerabilidade até se comparada a vizinhos. O relatório “Varieties of Democracy” (V-Dem), que monitora o estado de direito das democracias liberais em 180 países, posiciona o Brasil em 58º lugar, atrás de Argentina, Chile e Colômbia. “Mesmo em lugares onde há muita instabilidade política, não é tão forte a presença de movimentos populares que buscam colocar a própria democracia em xeque, como no Brasil”, avalia David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP e coordenador do Observatório da Extrema Direita.

    INSPEÇÃO - Rosa Weber e Moraes na Papuda: presos criticam qualidade da comida e falta de camas e remédios
    INSPEÇÃO - Rosa Weber e Moraes na Papuda: presos criticam qualidade da comida e falta de camas e remédios (./STF)

    O condenável episódio de janeiro mostrou que o país tem instituições fortes, rendeu demonstrações de maturidade da elite política e contribuiu para dar tração ao debate sobre a necessidade de enquadrar quem conspira contra a democracia. Também serviu para deixar claro o amplo repúdio da sociedade a esse tipo de radicalização política, mesmo entre os partidários da direita democrática, que fizeram questão de se dissociar do delírio extremista que tomou Brasília. “Os bolsonaristas não estão menos radicais, mas o custo político de manter o mesmo discurso que os elegeu se tornou muito alto”, avalia o cientista político Adrian Lavalle, da USP. Isso não significa, porém, que essa corrente esteja enfraquecida. Um exemplo é o movimento para emplacar a sua versão do 8 de janeiro: a de que o governo Lula sabia dos riscos e nada fez, com o propósito de explorar politicamente as consequências — esse argumento está na raiz da ofensiva da oposição para instalar uma CPMI sobre o tema no Congresso. Para a antropóloga e professora da UFSC Letícia Cesarino, que monitora grupos de apoio a Bolsonaro nas redes, parte do eleitorado foi submetida a uma radicalização quase irreversível. “Houve um certo desalento entre apoiadores que acreditam que as forças democráticas estão contra eles”, entende.

    O aumento da radicalização política nos últimos anos poderia levar — e levou — a episódios como o 8 de janeiro, mas o importante agora é ecoar o recado de que o país não admite conviver com esse tipo de transgressão da ordem institucional. O principal lugar para passar a mensagem é exatamente o Judiciário, em especial o testado e resiliente Supremo Tribunal Federal, por onde caminhará nos próximos anos uma demorada discussão sobre as responsabilidades de cada um no episódio golpista. Demorada, mas necessária — e que precisa ser firme, justa e ampla. Que se puna quem for preciso punir.

    Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838

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