Mesmo sendo uma pasta para a qual o governo não dá muita bola, a Secretaria Especial da Cultura, agora vinculada ao Ministério do Turismo (tudo a ver, obviamente), é cobiçada: teve cinco titulares em três anos de gestão Bolsonaro. O troca-troca só sossegou quando o carioca Mário Frias, 50 anos, ex-ator e ex-apresentador, se tornou secretário, em meados do ano passado, e pôs em prática uma estratégia infalível para detentores de cargos públicos que não querem perder a boquinha. Ela consiste de três frentes distintas, mas não excludentes: 1) bajular o chefe em todas as oportunidades; 2) martelar fielmente sua cartilha ideológica; e 3) importunar os desafetos dele com assiduidade e dedicação. Sustentado por esse tripé, Frias se sentiu seguro para agir como bem entende em seu pequeno feudo, onde implantou um clima de medo e abusos.
Em dois inquéritos até agora — um aberto em maio pelo Ministério Público do Trabalho, a partir de duas denúncias de servidores, e outro, a que VEJA teve acesso, no Ministério Público Federal —, o secretário da Cultura é acusado de assédio moral e institucional, caracterizado por boicotes, perseguições e troca de gestores experientes por outros menos qualificados. No gabinete, teria se dirigido aos funcionários com gritos e ofensas e foi até visto ostentando uma pistola 9mm. Como parte de sua tática de defesa, foram enviadas ao MPF doze cartinhas, algumas de próprio punho, que se desmancham em elogios ao patrão, assinadas por servidores terceirizados, amigos que nomeou ou, segundo quem trabalha lá, gente pressionada a fazê-lo. “Há uma caça às bruxas. Qualquer servidor ou produtor cultural que se pronuncie contra a gestão é alijado”, afirma um integrante da equipe, sob condição de anonimato. Procurado por VEJA, Frias preferiu não se pronunciar.
Fora de seus domínios, Frias é a personificação do sujeito simpático e sorridente — ainda mais se estiver por perto Jair Bolsonaro, “o presidente mais galã da história”. Acha graça até quando é, ele mesmo, o alvo da piada homofóbica, como em recente solenidade para incrementar “políticas públicas culturais” em Bahrein. Ao ouvir um comentário sobre o passado de Frias na novela Malhação, o presidente, na plateia, apontou para o subordinado e falou: “Mas ele é hétero”. Gargalhada geral no vídeo que viralizou. “Quando se encontram, Bolsonaro brinca, rindo, que ele entrou na Globo pelo teste do sofá”, conta uma pessoa próxima. O evento em Bahrein, aliás, foi o único — imprescindível — compromisso do secretário na viagem de cinco dias da vasta comitiva presidencial à Península Arábica.
Como seu mestre, Frias bate no peito para dizer que não tomou vacina contra a Covid-19. Nas redes sociais, já criou confusão com, entre outros, Wagner Moura, Marcelo Adnet, Cissa Guimarães e Caetano Veloso. “Ele xinga para se valer da audiência de quem tem relevância de fato. Caetano nem sabe quem é Frias”, diz a empresária Paula Lavigne. “É uma marionete do presidente e se tornou um mensageiro anticultural dele: tendencioso, radical e promíscuo”, define o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), ex-aliado de Bolsonaro.
Enquanto o secretário briga daqui e bajula dali, sua pasta vira balcão ideológico. Nas últimas semanas, vetou o uso de linguagem neutra e proibiu a exigência de passaporte da vacina em projetos da Lei Rouanet. Esses, por sinal, não andam (a não ser os de cunho religioso, que saltaram de um em 2020 para dezenove este ano): há 870 propostas em análise, a maioria esperando a liberação de 500 milhões de reais já captados e em contas bloqueadas, segundo balanço obtido por VEJA. A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que analisa os projetos, está paralisada desde abril e o trabalho recai sobre uma única pessoa, o ex-PM André Porciúncula, secretário de Fomento e Incentivo à Cultura. Em outubro foi lançado um edital para recompor a CNIC, mas a canetada final permanecerá com Porciúncula. “Bolsonaro prometeu abrir a caixa-preta da Lei Rouanet, mas o que vemos é o exato oposto”, diz o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), da Comissão de Cultura da Câmara.
Um raro segmento generosamente beneficiado pela Secretaria da Cultura é o dos jogos eletrônicos, alvo do empreendedorismo do filho mais novo do presidente, Jair Renan. Um misterioso projeto Casinha Games foi abastecido com 4,6 milhões de reais do Fundo Nacional de Cultura (FNC), quase igual à verba total distribuída pelo programa em 2020. A relação de Frias com os Bolsonaro começou na praia da Barra da Tijuca, no Rio, onde conheceu o filho mais velho, o senador Flávio. Ao ingressar no governo, os laços com o clã se estreitaram a ponto de postar foto com o deputado Eduardo Bolsonaro (que vez ou outra indica gente sua para a pasta), ambos armados. Empolgado com a irmandade que forjou com o poder, Frias estaria cultivando um projeto maior: lançar-se candidato a deputado federal em 2022. Se o chefe deixar, claro.
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766