Meia-volta, volver
Para combater o proselitismo nas escolas, projeto de lei que tramita no Congresso abre espaço para clima de caça às bruxas que tem tudo para piorar o ensino
A cada governo que entra, o assunto educação deixa os holofotes provisórios da campanha eleitoral, onde costuma desfilar na linha de frente das promessas dos candidatos, e volta à triste prateleira dos problemas que se arrastam sem solução. Desta vez foi diferente: encerrada a votação que elegeu Jair Bolsonaro, a educação prosseguiu na pauta de discussões acirradas. Infelizmente, o saldo da agitação não gira em torno de nenhuma providência capaz de pôr o ensino do Brasil nos trilhos da excelência — a real prioridade.
A questão da hora é o projeto do deputado-pastor Erivelton Santana, do Patriota da Bahia, que pretende legislar sobre o que o professor pode ou, principalmente, não pode falar em sala de aula. Com o propósito de impedir a doutrinação de professores em classe, o projeto ameaça alimentar o oposto do que propõe: censura, patrulhamento, atitudes retrógradas e pensamento estreito — como aparece na ilustração ao lado, uma paródia da capa do livro Caminho Suave, clássico da alfabetização tradicional. Em seu projeto, há um problema de origem, segundo o especialista em educação Claudio de Moura Castro, colunista de VEJA. “Não há como definir em uma lei o que é variedade de pensamento e o que é proselitismo”, diz ele. Ou seja: a questão é muito, mas muito mais complexa do que pode parecer à primeira vista.
Fruto do ambiente polarizado da sociedade brasileira, a discussão entrou pela porta da frente das escolas. Nesse clima de paixões exaltadas, no entanto, é preciso um esforço adicional para separar o joio do trigo. A doutrinação em sala de aula é condenável sob todos os aspectos — seja de esquerda ou de direita, religiosa ou ateia, ou de qualquer outra natureza. A escola é um lugar para o debate livre das ideias, e não para o proselitismo. Nas redes sociais, há relatos de alunos que tiveram de optar entre ir a uma manifestação contra Michel Temer e fazer uma prova, o que é inteiramente inadmissível. Em outro caso, uma professora definiu em sala de aula os eleitores de Bolsonaro como “pessoas execráveis, asquerosas e nojentas”, algo que fere qualquer princípio elementar de pedagogia. Tudo isso é intolerável dentro de uma escola. Mas há duas considerações relevantes. Primeira: essa não é a realidade das escolas brasileiras — são exemplos da exceção, e não da regra. Segunda: há formas eficazes de lidar com o problema, mas elas não estão em debate.
Estou procurando alguém para ser ministro da Educação que tenha autoridade. Que expulse a filosofia de Paulo Freire. Que mude os currículos escolares para aprender química, matemática, português, e não sexo.
Jair Bolsonaro, presidente eleito, simplificando os problemas e as soluções do ensino e batendo no culpado de sempre
O projeto de lei em discussão na Câmara, por exemplo, está voltado para a censura aos professores, o que pode resultar numa caça às bruxas. Ele proíbe, entre outros pontos, disciplinas, obrigatórias ou facultativas, que tratem de “ideologia de gênero” e até o uso puro e simples do vocábulo “gênero”. Dá para imaginar alunos gravando cada palavra do professor e tentando enquadrá-lo por se referir, digamos, a “gênero literário”. Também determina que o mestre, ao tratar de questões políticas, apresente “as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas” sobre o assunto. Isso soa justo e equitativo, mas eis uma prova da complexidade do tema: ao falar da escravidão negra, será necessário também mostrar como ela pode ser justificável? Ao analisar a II Guerra, devem-se expor os belos argumentos defendidos pelos nazistas, que exterminaram judeus nos campos de concentração?
O resultado dos excessos será, no mínimo, a instauração de um clima pesado e antagonista na escola e, no limite, levará os professores para a cadeia. Sim, quem desobedecer à lei correrá o risco de ser acusado de abuso de autoridade e ficar sujeito a pena de até seis meses de prisão e afastamento do serviço público. Colocar essa espada de Dâmocles sobre a cabeça dos professores é acabar com o ensino. Afinal, todo conhecimento é socialmente construído e, portanto, a aventura humana, por definição, nunca é neutra ou isenta de valores. A saída é discutir e chegar a um consenso sobre o que precisa ser apresentado ao aluno, e não vigiar e punir.
O texto em tramitação na Câmara foi inspirado no movimento Escola sem Partido, criado em 2004 pelo advogado Miguel Najib, de 58 anos. “Ele expressa os mesmos preceitos, princípios e garantias constitucionais que defendemos”, diz Najib. O advogado fundou o movimento em decorrência de um episódio no qual sua filha, então com 15 anos, ouviu seu professor comparar Che Guevara a São Francisco de Assis. Indignado, Najib redigiu uma carta aberta ao professor, distribuiu cópias impressas no estacionamento da escola e começou sua campanha, que cresceu sob o impulso das redes sociais. Sua revolta originou-se de um motivo justo, mas levou à impressão equivocada de que as escolas brasileiras abrigam uma legião de professores dispostos a santificar Che Guevara — e certa onda espalhou-se pelo país. No Rio de Janeiro, o deputado estadual Flavio Bolsonaro (o clã inteiro abraçou a ideia com entusiasmo) entrou em ação em 2014 e levou à Assembleia um projeto próprio moldado no Escola sem Partido, que está parado na Comissão de Educação. “Temos mania de fazer lei para tudo, e isso engessa uma discussão que nasceu de uma preocupação real e necessária”, diz o filósofo e professor Luiz Felipe Pondé. Em linhas gerais, o projeto que tramita na Câmara tem a declarada intenção de atacar dois demônios, a doutrinação e a educação sexual, e salvaguardar “os valores de ordem familiar” na educação moral e religiosa. Examinem-se com lupa os três pontos e suas implicações:
DOUTRINAÇÃO
Doutrinar é expor ideias e opiniões com o propósito de convencer o outro. A todo bom professor cabe estimular o confronto de ideias e o livre pensar, inclusive expressando seu ponto de vista, mas não catequizar — uma linha fina que exige discernimento constante. Quanto mais qualificado for um professor, menor a chance de postura equivocada. Não é o caso de impor leis nem de pregar cartazes na parede do colégio com os “deveres do professor” — basicamente, não falar nada de que os pais discordem —, como prevê um anexo ao projeto. As providências devem vir, isto sim, das várias esferas do ensino, a começar pela própria escola. “O debate entre professores e coordenadores precisa ser permanente”, diz Claudia Costin, do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV. O Pisa, exame internacional da OCDE que molda a educação dos melhores, defende para a sala de aula uma visão ampla dos fenômenos históricos e científicos e do enfrentamento do contraditório. Ou seja: ensinam-se motosserra e Greenpeace, Karl Marx e Adam Smith. Divergir é vital. E isso só acontece num ambiente de pluralidade de ideias.
EDUCAÇÃO SEXUAL
O projeto de lei em análise pelos deputados reza que o poder público “não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos”. A motivação, aqui, é evitar que crianças sejam induzidas à homossexualidade, uma tese que, até agora, ajudou apenas a instalar um clima de pânico moral em certos bolsões. É óbvio que a escola não pode induzir determinado comportamento sexual — ainda que a ciência já tenha mostrado que ninguém é gay por “indução”. Na verdade, falar de sexo na escola é positivo e recomendável. A Organização Mundial da Saúde analisou mais de 1 000 relatórios sobre os efeitos da disciplina no comportamento de adolescentes e concluiu que, quanto mais informação de qualidade eles recebem, mais tarde iniciam a vida sexual. Segundo a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do programa de estudos em sexualidade da Universidade de São Paulo, uma boa educação sobre o tema é ferramenta fundamental para reduzir a vulnerabilidade da criança à violência sexual. “É muito melhor que ela reconheça onde está o perigo do que não saber sequer identificá-lo”, afirma. Na Alemanha, educação sexual na escola é lei desde os primeiros anos, e os pais que impedirem os filhos de frequentar as aulas podem ser presos. Na conservadora Coreia do Sul, país com excelente desempenho no Pisa, o assunto ainda é tabu, mas há um movimento em curso para implantar a educação sexual nas escolas.
RELIGIÃO E MORAL
Ao dar aos pais total controle sobre o conteúdo dessas duas disciplinas, dizem os especialistas, o projeto do pastor Santana fere princípios constitucionais, por limitar o livre desenvolvimento do pensamento. “Em uma escola com 1 000 alunos pode haver 500 posições familiares diferentes. Quem vai decidir o que será ensinado?”, pergunta o educador Eduardo Mortimer, da Universidade Federal de Minas Gerais. Uma regulamentação nessa linha abre brecha para desatinos como ensinar ao mesmo tempo o criacionismo — profissão de fé que sustenta que o mundo foi criado tal qual está no livro do Gênesis — e a teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin. A ideia foi defendida recentemente pelo general Aléssio Ribeiro Souto, assessor de Bolsonaro para a educação, de quem também já se ouviu que toda a bibliografia escolar precisa ser revista para remover livros de “conteúdo impróprio”. Ele se referia à história do regime militar instaurado em 1964.
As medidas que o Congresso ainda nem votou já produzem excessos e insegurança no meio escolar. A insistência do presidente eleito em apontar baterias contra Paulo Freire (1921-1997) é um exemplo. Freire era um pedagogo (de esquerda) que se tornou referência internacional ao criar e disseminar um método de ensino, a “pedagogia do oprimido”, que ajudou a reduzir as taxas de analfabetismo em vários países. “Vou expulsar a filosofia de Paulo Freire” das escolas, disse Bolsonaro. “Paulo Freire surgiu nos anos 1950, em uma realidade completamente diferente da atual. Pode estar ultrapassado, mas nem por isso precisa ser banido”, pondera Ítalo Curcio, coordenador do curso de pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
A fúria tem produzido efeitos constrangedores. Em Santa Catarina, a recém-eleita deputada estadual Ana Caroline Campagnolo, do PSL de Bolsonaro, que pratica tiro ao alvo nas horas vagas, foi às redes sociais pedir a alunos que filmem e denunciem “professores doutrinadores”. Uma carta sem autoria definida distribuída no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco anunciou que “doutrinadores esquerdistas serão banidos em 2019” (os doutrinadores direitistas, pelo jeito, tudo bem). Pressionada por pais de alunos, a direção do Colégio Santo Agostinho, um dos mais tradicionais do Rio, tirou da lista de leituras Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel, romance em que um personagem perseguido pela ditadura foge do país.
Na semana passada, a prova do Enem produziu o mesmo calor devido a duas questões (veja o quadro abaixo). “A prova parecia ter sido feita pelo PT”, denunciaram. Maria Inês Fini, presidente do Inep, órgão responsável pelo exame, aprovou o teste — e olha que ela estava cotada para assumir o Ministério da Educação de Bolsonaro. “Subestima-se a capacidade do jovem de compreender a diversidade de ideias e autores”, desabafou um alto integrante do ministério diante das críticas. “A escola não deve ser sem partido. Deve ser de todos os partidos.”
A discussão sobre doutrinação nas escolas chegou ao Supremo Tribunal Federal, que vai analisar, no fim deste mês, uma ação de inconstitucionalidade de uma lei nos moldes do projeto do pastor Santana. A lei foi aprovada em Alagoas e suspensa por uma liminar do ministro Luís Roberto Barroso. “Pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule conteúdo com o qual não estejam de acordo”, escreveu Barroso em seu parecer. O mundo é diverso em múltiplos aspectos — do étnico ao sexual, do político ao religioso — e a escola é o lugar adequado para que essa diversidade seja discutida livremente. No Brasil que se equilibra na crista de uma onda conservadora, pede-se que a voz da razão e da amplitude de ideias prevaleça. A melhor escola ainda é a que faz pensar — sem proselitismo.
Não li e não gostei
O problema é outro
Quem se dispuser a sair à caça de livros doutrinários nas escolas públicas brasileiras terá um empecilho crucial, mas não exatamente uma surpresa: em 18,9% das unidades das redes estaduais de ensino fundamental e em 61,1% das municipais não há biblioteca (ou mesmo uma simples sala de leitura).
Tais números, recentemente divulgados pelo Ministério da Educação, são espantosos — ou deveriam ser, em qualquer discussão sobre a qualidade da educação oferecida pelo governo. Quem se lembra, porém, de ter ouvido discursos inflamados ou visto posts nas redes sociais de parlamentares a respeito da escola sem livro, sem aula, sem instalações adequadas, sem quase nada?
Tomem-se apenas as instituições de ensino fundamental comandadas pelos municípios, que em geral apresentam as maiores deficiências. Somente 28,6% delas possuem quadras de esportes, e o número de parquinhos chega a escassos 14,3%. Pouco mais da metade (52,6%) tem internet.
Os colégios voltados ao ensino médio apresentam índices melhores, mas ainda assim desoladores para alunos que deveriam estar se preparando para o Enem e o vestibular. Laboratórios de ciências são realidade em 28,2% das escolas municipais e em 39,2% das estaduais. Como os estudantes podem competir em condições razoáveis nos processos seletivos de boas universidades? “O ambiente, por si só, pode ser educador”, ressalva Neide de Aquino Noffs, da Faculdade de Educação da PUC-SP. “A responsabilidade não é só do governo. Há gestores sem recursos que conseguem desenvolver brinquedotecas lindas fazendo parcerias com a comunidade.”
No plano geral, contudo, a deficiência é a regra atávica. Um caso recente, símbolo de todo o restante, é o da escola estadual paraibana Antônio Pessoa, em João Pessoa. A reforma do prédio seria uma boa notícia, mas as aulas estão paralisadas há dois meses devido às obras. Na semana que vem as atividades serão retomadas, mas em outro endereço. Até lá, não há professor presente para ensinar — quanto mais para ser filmado.
Diego Freire
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608