Moro e Bretas podem trocar de lugar com os criminosos que condenaram
O ex-ministro e o juiz vivem uma radical inversão de papéis
No Brasil, projetar qualquer perspectiva que envolva um período mais elástico é uma tarefa arriscada nos dias de hoje. Há uma semana, o ex-presidente Lula estava condenado a 26 anos de prisão, respondia a outros dois processos na Justiça e, por ser um ficha-suja, não podia pensar nem na hipótese de se candidatar a vereador de São Bernardo Campo, seu berço eleitoral. Era uma carta completamente fora do baralho político. Isso, como se sabe, mudou. Há uma semana, o ex-juiz Sergio Moro, que decretou a prisão de Lula, era apontado pelas pesquisas como o único candidato capaz de bater Jair Bolsonaro na eleição presidencial do ano que vem. Isso está prestes a mudar. Lula teve seus processos anulados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), as sentenças revogadas e, agora ficha-limpa, está livre para voltar aos palanques. Moro, por sua vez, pode se tornar réu, ser declarado ficha-suja e, como tal, impedido de se candidatar a cargos eletivos — uma inesperada inversão de papéis em que o condenado se transforma em vítima e o juiz que mandou prendê-lo é alçado à condição de criminoso.
A senha de que algo nessa direção está na iminência de ocorrer foi revelada pelos ministros da Segunda Turma do STF durante o julgamento de um pedido de suspeição do ex-juiz impetrado pelo ex-presidente Lula. Em seu voto, na semana passada, o ministro Ricardo Lewandowski escreveu textualmente que, para ele, não havia nenhuma dúvida de que Sergio Moro agiu de maneira ilegal na condução do processo contra o petista: “Ficou patenteado o abuso de poder com o qual se houve o ex-magistrado, bem assim o seu completo menosprezo ao sistema processual vigente no país, por meio da usurpação das atribuições do Ministério Público Federal e mesmo da Polícia Federal, além de haver ficado evidente a ocorrência de ofensa aos princípios do juiz natural e do devido processo legal, em meio a outras irregularidades e ilicitudes”. O ministro, além de considerar que Moro atuou com parcialidade, afirma que o ex-juiz praticou crime de abuso de autoridade. “Restou escancarada uma indevida confusão entre as atribuições de julgar e de acusar por parte do então magistrado Sergio Moro. E o pior: confusão essa motivada por razões mais do que espúrias”, disse Lewandowski, que chegou ao cargo por indicação do agora ex-condenado Lula.
“Ficou patenteado o abuso de poder com o qual se houve o ex-magistrado (Moro), bem assim o seu completo menosprezo ao sistema processual vigente no país”
Lewandowski
Abuso de Autoridade
O crime é caracterizado quando um agente público extrapola suas funções para prejudicar alguém, beneficiar a si próprio ou atuar por capricho ou satisfação pessoal. A pena pode chegar a quatro anos de prisão e inabilitação de exercício de função pública por até cinco anos
Desde que pediu demissão do Ministério da Justiça, Sergio Moro enfrenta um cerco em múltiplas frentes. No Supremo, a suspeição já obteve dois votos favoráveis (dos ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes) e dois votos contrários (dos ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia). O voto de minerva será do ministro Kassio Nunes Marques, que interrompeu o julgamento e pediu vista do processo. Além da suspeição, Moro pode acabar sendo processado por abuso de autoridade, crime que se caracteriza quando um agente público extrapola suas atribuições para prejudicar alguém, beneficiar a si próprio ou atuar por capricho ou satisfação pessoal. Decretar uma prisão ilegal ou conduzir coercitivamente um suspeito sem prévia intimação, por exemplo, podem resultar em uma punição de até quatro anos de cadeia. Se condenado em duas instâncias, Moro ficaria inelegível. Há outros flancos de atuação contra o magistrado que atuou no maior caso de corrupção da história.
“Não sei por que esse escândalo ainda não veio à tona, mas o que se fala em torno dessa 7ª Vara é de corar também frade de pedra”
Gilmar Mendes
Suspeitas no Rio
A 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro é comandada pelo juiz Marcelo Bretas, responsável pelas investigações da Lava-Jato no estado. Nos últimos seis anos, o magistrado julgou os processos que levaram à prisão, entre outros, o ex-governador Sérgio Cabral e o empresário Eike Batista
No Congresso, parlamentares, muitos deles atingidos pelas investigações da Lava-Jato, se movimentam para ressuscitar projetos que estabelecem a obrigatoriedade de quarentena para juízes que pretendam disputar eleições. Um deles, de autoria do deputado Fábio Trad (PSD-MS), fixa em seis anos o prazo de desincompatibilização. A regra, porém, não é retroativa. Sob reserva, um empenhado em inviabilizar a eventual carreira política de Sergio Moro disse a VEJA que a ideia é aprovar um texto vago o suficiente para que não se tenha certeza se a lei se aplica ou não ao ex-juiz, que deixou a magistratura em 2018. “Se, em 2022, Moro quiser concorrer, a ideia é que ele precise ficar pendurado em uma liminar. Será no mínimo constrangedor”, resumiu um adversário do ex-ministro. O ardil ainda encontra alguma resistência. “Se houver a intenção de retroagir em uma estratégia desavergonhada de fazer leis para pegar um ou outro, se começarem com essa feição casuística de quererem garrotear os direitos do Moro, vão ter em mim um inimigo declarado”, disse Trad a VEJA. Em uma terceira frente, advogados discutem fórmulas com o objetivo de, além de constranger, asfixiar financeiramente Sergio Moro, seja através de uma condenação ao pagamento das custas processuais do caso Lula, seja por processos de indenização para ressarcir o ex-presidente por prejuízos morais. Não é piada. Já se fala até em cifras milionárias. O Tribunal de Contas da União ampliou ainda mais a pressão. Na quarta-feira 17, o juiz João de Oliveira Rodrigues Filho, da 1ª Vara de Falências de São Paulo, suspendeu os pagamentos da Odebrecht à consultoria americana Alvarez & Marsal, responsável pela recuperação judicial da empreiteira. Motivo: o TCU suspeita que existe um conflito de interesses na contratação do ex-juiz para trabalhar como diretor da empresa. Moro não está sozinho nesse processo de desconstrução.
“Se houver a intenção de retroagir em uma estratégia desavergonhada de fazer leis para pegar um ou outro, para garrotear os direitos do Sergio Moro, vão ter em mim um inimigo declarado”
Fabio Trad
Quarentena para juízes
O projeto de lei do deputado Fabio Trad (PSD-MS) aumenta de seis meses para seis anos a quarentena para que juízes e membros do Ministério Público possam se candidatar a cargos eletivos. O texto não fala em retroatividade, mas há um movimento no Congresso para incluir essa alteração, o que tornaria Sergio Moro inelegível
Na mesma sessão que analisava a suspeição de Moro, o ministro Gilmar Mendes fez uma intervenção surpreendente. Segundo ele, um novo escândalo envolvendo outros personagens importantes da Lava-Jato estaria na iminência de eclodir. “Não sei por que esse escândalo ainda não veio à tona, mas o que se fala em torno dessa 7ª Vara é de corar também frade de pedra.” A Vara a que Mendes se referiu sem dar maiores detalhes é comandada por Marcelo Bretas, juiz que ganhou notoriedade por dar sequência no Rio de Janeiro às investigações que começaram em Curitiba. O magistrado carioca decretou mais de 260 prisões e condenou 41 pessoas por crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. No rol estão ex-figurões da política, como o ex-governador Sérgio Cabral, e antigas estrelas do mundo empresarial, como Eike Batista e Fernando Cavendish. A suspeita é que Bretas, além de algumas decisões estapafúrdias, como a prisão do ex-presidente Michel Temer, tenha se comportado de forma semelhante a Moro em relação ao Ministério Público. Ou seja: não funcionava como uma célula imparcial, mas, sim, como o próprio chefe da força-tarefa.
O caso da suspeição de Moro é complexo e ainda dará margem a múltiplas discussões. Para o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, a suspeição do ex-juiz está mais do que demonstrada, especialmente depois que se tomou conhecimento do conteúdo das mensagens hackeadas dos telefones dos procuradores da Lava-Jato. Algumas delas sugerem que o magistrado atuava em parceria com os investigadores, recomendando diligências e indicando testemunhas, o que os códigos proíbem. Portanto, ao considerar que Moro agiu com parcialidade, Mendes e Lewandowski estariam aplicando o que diz a lei, mesmo considerando o fato de as mensagens terem sido obtidas de maneira criminosa. No entendimento dos dois ministros, qualquer evidência, inclusive de origem ilegal, pode ser usada pela defesa para provar a inocência de um réu. O problema é que Lula não é inocente. A Lava-Jato descobriu — e isso é indelével — que ele foi o mentor, o mantenedor e o beneficiário direto do esquema de corrupção na Petrobras. “Numa sociedade minimamente saudável, é a lei que impera. Mesmo sendo o investigado a pessoa mais criminosa do mundo, se o processo foi contaminado com provas ilegais, ele tem de ser refeito. O senso de justiça da sociedade não pode ser a ética do justiçamento”, diz o professor de ética e filosofia da Unicamp Roberto Romano. É uma controvérsia que caberá ao plenário do Supremo Tribunal Federal resolver.
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Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730