O procurador-geral da República, Augusto Aras, tem um excelente relacionamento com o Congresso. Isso ficou evidente no mês passado, quando sua recondução ao cargo foi aprovada com extrema facilidade. A boa convivência explica-se, em parte, por uma coincidência de opiniões. Aras sempre foi um crítico ferrenho dos métodos empregados pela Operação Lava-Jato, cujas investigações fisgaram ou perturbaram um naco considerável do Parlamento. No Supremo Tribunal Federal (STF), esse entendimento resultou na anulação dos processos que envolvem o ex-presidente Lula e, muito provavelmente, vai resultar também no arquivamento da maioria dos casos em que deputados e senadores são apontados como beneficiários de esquemas de corrupção. A aparente harmonia que prevalecia até agora entre as duas instituições, no entanto, está na iminência de sofrer uma fissura.
Nos últimos dias, o deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) recebeu incontáveis pedidos de audiência de procuradores, promotores e políticos. A romaria é uma tentativa de estancar um movimento que, sem alarde, pretende alterar a Constituição para dar a deputados e senadores poderes para indicar a autoridade responsável por instaurar processos disciplinares contra os integrantes do Ministério Público. No sistema vigente, essa prerrogativa é do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que escolhe um procurador por meio de eleição direta entre os conselheiros. A proposta de mudança, que conta com o apoio de doze partidos de diferentes espectros políticos e o aval do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), estabelece que o corregedor passará a ser indicado pelo Congresso.
O embate tem raízes na Lava-Jato. Deputados e senadores, especialmente os que foram investigados, acusam os procuradores de cometer arbitrariedades. O alvo principal das críticas é a então força-tarefa de Curitiba, onde começaram as apurações que deram origem ao maior escândalo de corrupção da história. Tramitam no CNMP várias representações contra os procuradores. Os parlamentares dizem que o corporativismo impede que esses processos avancem. Durante a Lava-Jato, houve, de fato, certos exageros em várias ações dos investigadores que realmente precisam ser apurados e, se for o caso, punidos de acordo com o que a lei prevê. Mas é fato também que há um desejo latente de revanchismo por parte de alguns políticos interessados na mudança.
A primeira tentativa de alterar a formação do colegiado de conselheiros partiu do deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Se dependesse dele, o corregedor do CNMP nem precisaria ser do corpo funcional do Ministério Público. Poderia ser um delegado, um juiz e — por que não? — até um parlamentar. “Não é revanchismo, mas uma corporação não pode achar que está acima da lei. Há a compreensão de que esse conselho não tem dado respostas à altura a crimes que são praticados por promotores e procuradores, e o Deltan é um caso paradigmático”, diz Teixeira. Deltan é o procurador Deltan Dallagnol, ex-coordenador da Lava-Jato em Curitiba, responsável, entre outras coisas, pela investigação que levou o ex-presidente Lula e outros petistas à cadeia. “Colocar um corregedor indicado pelo Congresso compromete a independência do MP. É a mesma coisa que colocar no Congresso um membro do Judiciário para apurar condutas internas dos deputados e senadores”, diz Manoel Murrieta, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público.
A punição de um procurador que cometeu atos ilegais em uma investigação não depende unicamente do corregedor do CNMP, mas, por ser o responsável por propor a abertura do processo, é ele quem dá ao colegiado o tom sobre a gravidade das acusações. Nos últimos dezoito meses, os conselheiros aplicaram dezesseis penas de suspensão, sete censuras, seis advertências e uma demissão. “Ainda que seja legítimo esse debate no Parlamento, e também uma prerrogativa do Congresso Nacional a análise de quaisquer alterações no âmbito da Constituição, não vejo necessidade de mudar o atual modelo de indicação da Corregedoria. Os conselheiros, em especial o corregedor, vêm cumprindo à risca seus deveres constitucionais e atuado, como há muito não se via, para conter eventuais abusos de membros do Ministério Público”, disse Aras a VEJA. O procurador-geral terá de ser bem menos diplomático caso realmente queira convencer os parlamentares a abandonar a proposta que, por enquanto, aparenta não ser nada além de uma interferência deletéria disfarçada de bons propósitos.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754