No livro O Mundo Assombrado pelos Demônios (a despeito de a obra ter sido publicada em 1995 o título soa terrivelmente atual), o astrônomo americano Carl Sagan (1934-1996) mostra quanto a raça humana pode lucrar com a crença na ciência: “Quando chegarmos a compreendê-la e reconhecermos plenamente sua beleza e o seu poder, veremos que, tanto nas questões espirituais como nas práticas, fizemos um negócio vantajoso para nós”. Jair Bolsonaro faz parte do grupo que não acredita que o ensinamento pode ser útil, principalmente quando está em jogo seu futuro político. Em meio à atual crise sanitária, ele resolveu colocar todas as suas fichas na péssima e irresponsável aposta de contrariar tudo o que o conhecimento científico acumulou até agora sobre o coronavírus. Em um pronunciamento na última terça, 24, que vai entrar para história devido à dose cavalar de insensatez condensada em pouco menos de cinco minutos, ele bateu de frente até com as normas do Ministério da Saúde. Enquanto os médicos orientam a população a respeitar a atual quarentena de forma a prevenir os efeitos catastróficos de uma sobrecarga nos hospitais, o presidente subiu o tom de seu discurso negacionista — na contramão também dos conselhos da Organização Mundial da Saúde e da postura adotada pela esmagadora maioria dos líderes no exterior.
O pronunciamento desastroso e um tanto quanto amador ocorreu no mesmo dia em que o Brasil havia acabado de contabilizar 46 mortes em decorrência do coronavírus. Em vez de prestar condolências às famílias das vítimas, acalmar a população e anunciar medidas importantes para reforçar o combate, o presidente espalhou desinformação e acusações. Ao demonstrar uma justa (mas atabalhoada) preocupação com o futuro da economia, defendeu medidas temerárias para o momento em que há um esforço mundial destinado a evitar a circulação da doença: o fim da quarentena para as pessoas poderem retomar o trabalho e o retorno às aulas, com o argumento de que apenas os idosos e doentes crônicos sofrem complicações da Covid-19 (o que não é 100% preciso). Em certo momento, voltou a ironizar o potencial da doença ao dizer que, por seu histórico de atleta, teria apenas uma “gripezinha” ou “resfriadinho” caso fosse infectado. Chamou ainda de “histeria” os cuidados atuais e culpou a mídia (sempre ela, essa danada) e os governadores pela paralisação do país.
As reações foram fortes e imediatas, a começar por um panelaço-master ouvido em diversos cantos do Brasil. O discurso virou manchete negativa na imprensa internacional e aumentou o isolamento político do presidente. “Neste momento grave, o país precisa de uma liderança séria, responsável e comprometida com a vida e a saúde da sua população”, afirmou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), classificou o discurso de equivocado. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes escreveu que “as agruras da crise, por mais árduas que sejam, não sustentam o luxo da insensatez”. Alguns foram mais longe nas críticas. “Se não calar, está preparando o fim”, tuitou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. João Amoêdo, do partido Novo, sugeriu a renúncia caso Bolsonaro não passe a demonstrar equilíbrio e bom senso. Em editorial publicado no dia 26, o jornal O Estado de S. Paulo defendeu a ideia de que Bolsonaro representa um risco à saúde pública.
O presidente disse isso tudo no mesmo dia em que o Comitê Olímpico Internacional havia anunciado o adiamento da Olimpíada pela primeira vez na história (veja reportagem na pág. 62). Na mesma data, a Índia determinou a quarentena de 1,3 bilhão de pessoas, para tentar conter o alastramento do vírus. O tom do pronunciamento provocou mais estupefação ainda porque ocorreu após um breve período de calmaria. Entusiasta de teorias da conspiração, a ponto de tachar a pandemia de fantasia que surgiu a pretexto de fragilizar o seu governo, o presidente começou a semana pregando cooperação com os governadores e anunciando uma ajuda de 88 bilhões de reais aos estados e municípios. Ao prometer recursos e defender a união nacional na segunda passada, 23, Bolsonaro parecia, finalmente, entender a gravidade da crise. A paz durou pouco e o clima de beligerância e de insensatez piorou consideravelmente depois do pronunciamento. No dia seguinte, na saída do Palácio do Planalto, Bolsonaro mencionou que o caos poderia trazer uma desordem democrática (pode ser uma bravata ou outra declaração irresponsável, mas é fato que seu governo tem forte presença de militares e já deu passo recente na direção da censura ao editar uma medida provisória para restringir a lei de acesso à informação, interpretada como tentativa de barrar o acesso da imprensa ao exame de saúde da Covid-19 do presidente, que ele jura ter dado negativo; esse trecho da MP foi suspenso pelo ministro do STF Alexandre de Moraes dois dias depois). Na sequência, em uma teleconferência com governadores do Sudeste, o capitão manteve o tom de confronto ao bater boca com João Doria (PSDB-SP). Na ocasião, o governador paulista criticou a postura do presidente. Bolsonaro elevou o tom, chamando o tucano de oportunista por ter se aliado a ele em 2018, e o acusou de usar a crise como palanque para 2022. Não poderia haver momento menos adequado para esse tipo de discussão.
A pregação pelo fim da quarentena desagradou também a boa parte dos ministros (“desastre, desastre”, classificou um deles a VEJA, sob condição de anonimato) e é resultado da influência de dois grupos. O primeiro é comandado por seu filho Carlos, vereador no Rio e mentor do chamado “gabinete do ódio” que opera dentro do Palácio do Planalto. Conhecido por enxergar conspiradores em todos os cantos, o Zero Dois acha que adversários estão usando a pandemia para fragilizar o governo e a candidatura à reeleição de seu pai. Como de costume, receitou como reação a aposta no enfrentamento, que manteria a base bolsonarista mais radical mobilizada. Já o segundo grupo reúne a equipe econômica e empresários próximos ao presidente. Num tom bem mais ameno, o ministro Paulo Guedes recomendou a Bolsonaro que defendesse o fim gradativo da quarentena a partir de abril. Empresários alinhados ao governo engrossaram esse coro, com direito à alegação de que a morte de alguns milhares não poderia pôr em risco o emprego de alguns milhões. Pouco suscetível a nuances, Bolsonaro abriu o verbo e acabou exagerando na mensagem.
Para alguém que construiu uma carreira radicalizando o discurso e fazendo do enfrentamento permanente contra adversários sua principal plataforma, Bolsonaro lida agora com um inimigo bem distinto. Lutar contra uma nova pandemia é bem mais complexo do que chamar para a briga os oponentes de sempre. “Ele precisa de embate para crescer, mas o momento pede conciliação e entendimento”, afirma o deputado federal Pedro Cunha Lima (PSDB-PB). Donald Trump vem fazendo também movimentos erráticos ao pisar no desconhecido terreno da Covid-19. Na última terça, quando as projeções mostravam que os Estados Unidos serão o centro mundial da epidemia nas próximas semanas, deixou o discurso conciliador dos últimos dias e voltou a culpar adversários e imprensa pela paralisação do país. Considerando-se que Trump é a grande referência de líder para Bolsonaro, certamente o movimento do americano inspirou o pronunciamento do brasileiro.
A coincidência com o presidente americano não fica apenas no comportamento confuso diante do desafio do coronavírus. Ambos vêm sofrendo arranhões na imagem desde o início da crise. VEJA obteve com exclusividade uma pesquisa do instituto Ideia Big Data que mensurou a popularidade do presidente. O levantamento foi realizado por telefone com 1 555 pessoas entre os dias 24 e 25 de março. Os números mostram que a aprovação caiu de 51% para 28% em comparação com o início do mandato. No mesmo período, a parcela dos que desaprovam dobrou de 20% para 40%. O presidente começou a perder também a guerra digital, terreno no qual sempre nadou de braçada. Um levantamento da Sala de Democracia Digital, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, mostrou que sua base de apoiadores encolheu pela metade nas postagens relacionadas ao coronavírus no Twitter. No dia do discurso, o debate sobre a doença registrou 6 milhões de tuítes, sendo 81% deles críticos a Bolsonaro. Antes do pronunciamento, o capitão já vinha sendo considerado displicente no combate à epidemia. Uma pesquisa recente do Datafolha mostrou que o desempenho do presidente durante a crise foi avaliado como bom ou ótimo por apenas 35% dos entrevistados. Enquanto isso, os governadores receberam 54% de aprovação e Luiz Henrique Mandetta, 55%. O protagonismo do ministro da Saúde e a boa interlocução dele com os governadores, aliás, geraram uma crise de ciúme no presidente, que enquadrou o titular da pasta nos últimos dias para que adotasse um discurso mais alinhado ao do governo. Em obediência ao chefe, Mandetta vem se mostrando mais titubeante na defesa técnica diante da doença, a ponto de criticar até a quarentena. “Temos de melhorar esse negócio, não ficou bom”, afirmou na última quarta, 25, durante uma coletiva na qual anunciou que o número de mortos no Brasil havia subido para 57.
Do ponto de vista dos interesses políticos de Bolsonaro (mesmo que à custa de semear mais confusão nas mensagens direcionadas à população), o puxão de orelhas em Mandetta foi bem-sucedido, mas poderia ter posto em risco a permanência do ministro no governo, algo catastrófico neste momento. Na mesma ocasião em que criticou a quarentena, o titular da pasta da Saúde garantiu que só deixaria o cargo se fosse demitido. O presidente, no entanto, não parece apreensivo em flertar com o abismo. Na tentativa de voltar ao terreno em que se sente mais confortável, provocando os velhos inimigos de sempre, mesmo quando a preocupação de todos está voltada para o coronavírus, ele isolou-se ainda mais. Horas depois do bate-boca com João Doria, o tucano e outros governadores fizeram uma reunião sobre a pandemia. Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, foi festejado no encontro. “Bem-vindo ao clube”, ironizou o petista Wellington Dias, do Piauí, conforme revelou a coluna Radar, de VEJA. Médico de formação, Caiado era um dos poucos aliados de Bolsonaro entre os governadores. Saiu da posição atirando, ao acusar o presidente de irresponsabilidade e “ignorância” ao propor a suspensão do isolamento. Esse clima de levante de autoridades contra o Palácio do Planalto é outra péssima notícia para o país no momento em que as ações econômicas e de saúde precisam ser coordenadas.
Outra baixa importante na base de apoio também contabilizada em março por causa da Covid-19 foi a da deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP). Autora do pedido de impeachment de Dilma Rousseff e cotada para ser vice de Bolsonaro, ela não fechou com a chapa do capitão, mas apoiou firmemente o início do governo. Agora, diz que está arrependida e pede que o presidente se afaste do cargo. Nas últimas semanas, três pedidos de impeachment foram protocolados na Câmara. Eles devem ser arquivados por Rodrigo Maia. Ainda bem. Não há o menor clima para se abrir um processo de afastamento do presidente da República em meio à gravidade da situação.
Incorrigível, Bolsonaro ainda fomenta confusões em sua própria equipe. Uma delas ocorreu em razão da medida provisória que previa a suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses. A MP foi bombardeada por entidades de classe, parlamentares e até pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli, já que não previa nenhum tipo de ajuda financeira ao trabalhador enquanto durasse a suspensão. Diante da reação negativa, Bolsonaro ligou para Guedes, que estava trabalhando de sua casa no Rio, para pedir satisfações sobre um texto que ele próprio assinou. Fica a pergunta: não leu antes? Mesmo após o ministro ter reforçado a importância da medida, Bolsonaro decidiu engavetá-la, alegando publicamente que houve um “erro de redação”. Não é verdade. O texto discutido e revisado pela equipe técnica não previa mesmo a ajuda financeira.
Cuidar da crise sanitária sem deixar um rastro irrecuperável de destruição econômica é necessário, mas exige um debate intrincado e tem implicações éticas que ganham volume no mundo inteiro. “Realmente não há meio-termo e imagino que seja muito difícil isso às pessoas: ‘Ei, continue indo a restaurantes, vá comprar casas novas, ignore a pilha de corpos no canto’”, afirmou o bilionário Bill Gates, em resposta ao movimento de Trump de fixar um prazo até a Páscoa para derrubar a quarentena. No Brasil, a equipe de Paulo Guedes planeja uma retomada gradativa das atividades depois de 7 de abril, período que coincide com as previsões do próprio governo sobre o pico da pandemia. Não será fácil, mas é possível. A melhor solução é estudar os exemplos de China e Alemanha, que vêm se saindo muito bem no combate à doença até aqui (leia reportagem na pág. 56).
Acostumado a ser bajulado, Bolsonaro não sabe lidar bem com situações complexas nem com a divisão de poder, como a situação exige agora. A perda de popularidade pode ser temporária, mas muito de seu futuro político será definido pela maneira como ele se comportar nas próximas semanas diante dessa crise. “A situação tende a piorar demais”, afirma o cientista político David Fleischer, professor da Universidade de Brasília. “O presidente está indo muito mal no começo do enfrentamento do problema.” O movimento de Bolsonaro nos últimos dias é de altíssimo risco. Se a pandemia for superada sem consequências muito graves, ele pretende jogar no colo dos governadores a inevitável recessão econômica — o que pode enganar seus eleitores, embora isso não seja verdade. Quem tem os meios mais eficazes para mitigar os efeitos econômicos do coronavírus é justamente o governo federal (leia a reportagem na pág. 50). Mas, se o saldo for uma catástrofe de dimensão semelhante à dos países europeus, o Brasil vai enterrar muita gente e o capitão, o seu próprio governo. “É all in”, afirmou a VEJA um deputado federal, referindo-se ao ato de atirar todas as fichas na mesa do pôquer. Pôr vidas em risco, no entanto, não é um jogo aceitável. Em momentos de crise, o presidente precisa demonstrar capacidade para liderar, qualidade que Bolsonaro não exibiu até o momento. O Brasil necessita ainda da união de adversários eleitorais em nome de um bem comum. Quando a responsabilidade das autoridades pesa mais do que os projetos pessoais delas, a sociedade sai ganhando. É exatamente isso que se espera no combate ao coronavírus: grandeza, bom senso e cooperação.
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680