Não estamos em 1964: os obstáculos à fantasia autoritária de Bolsonaro
O Brasil mudou muito desde o golpe militar e ele não conta com a mesma rede de apoios que abriu espaço à ditadura
Em uma retórica própria de líderes de seitas fanáticas, Bolsonaro anteviu três caminhos para o seu futuro: a prisão, a morte ou a vitória. Assim, dentro do peculiar imaginário do capitão, fica descartada a hipótese de uma derrota nas urnas em 2022. Como já afirmou mais de uma vez, o presidente acredita que só não será reeleito se houver um roubo nas urnas — daí a sua insistência em desacreditar o tempo inteiro o sistema eletrônico de apuração. O nível de irresponsabilidade é maior ainda quando insinua que poderá ocorrer um levante no caso de um revés no seu plano de recondução ao Palácio do Planalto. Dessa forma, em pleno século XXI, por incrível que pareça, entrou na pauta de assuntos nacionais a hipótese de uma ruptura democrática. Para pôr mais fogo ainda na história, Bolsonaro aposta todas as suas fichas nas manifestações de simpatizantes pró-governo no 7 de Setembro. Acredita que, assim, sua fantasia autoritária terá o devido respaldo popular. “Nunca uma outra oportunidade foi tão importante para os brasileiros”, afirmou. Para desgosto da claque radical, que incentiva o presidente a tentar alguma maluquice, e para alívio daqueles comprometidos com a democracia, felizmente temos hoje um cenário muito distinto daquele que permitiu a instalação de um regime autoritário em 1964.
Aquele Brasil não existe mais, tampouco Bolsonaro conta com uma rede de apoios que sustentou o golpe há quase seis décadas, a começar pelo respaldo internacional. Se hoje é inimaginável uma nação desenvolvida apoiar uma quartelada nos trópicos, nos anos 60, auge da Guerra Fria, os Estados Unidos mostravam-se empenhados em evitar que a revolução socialista de Cuba se repetisse na América Latina. Naquele Brasil, envolto em uma crise política desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o apoio de Washington foi fundamental para a tomada do poder pelos militares. Agora, a ameaça comunista aparece materializada apenas nas teorias delirantes dos bolsonaristas. Além disso, o Brasil não só está longe da lista de prioridades dos americanos, como também o presidente Joe Biden antagoniza com Bolsonaro em questões como direitos humanos e meio ambiente. “Os Estados Unidos se opõem fortemente a qualquer tomada ilegítima e antidemocrática do poder no Brasil”, afirma o brasilianista Peter Hakim, presidente emérito do Diálogo Interamericano, de Washington.
Além de se acertar com as potências de fora, Bolsonaro teria de combinar o golpe com as tropas daqui — e esse apoio incondicional é improvável. Sua recente tentativa de demonstrar poderio bélico virou piada, com a patética exibição de velhos tanques expelindo fumaça preta por Brasília. A despeito da grande participação de militares no atual governo, há alas de oficiais muito descontentes com o presidente e com a insistência dele em tentar usá-los como uma espécie de milícia particular (expressa na fala “meu Exército”, repetida por Bolsonaro). Na época do golpe de 1964, não havia incômodo entre as Forças Armadas em ter um papel de protagonismo na vida política. Muito pelo contrário. “Naqueles tempos, o poder militar exercia papel central na vida republicana ao se autoproclamar, e sendo visto assim por grupos civis relevantes, como regulador da vida nacional”, observa Marcos Napolitano, professor de história da USP. Superada a ditadura, as Forças Armadas tiveram de se adaptar ao rearranjo institucional e à Constituição de 1988.
No passado e no presente, os militares são sensíveis às vozes da população. Em 1964, eles tinham o apoio de parte expressiva da sociedade para derrubar João Goulart, sobretudo entre as chamadas elites. “Tanto a classe rica quanto a classe média alta eram contra o governo”, lembra o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro dos governos Sarney e FHC. Empresários e grandes fatias da população viam na intervenção uma possibilidade de estabilidade ante à tormenta política da época. Após o discurso de Jango para 150 000 pessoas na Central do Brasil, em março, que marcou a sua guinada à esquerda — anunciou a desapropriação de terras e de refinarias e o tabelamento de aluguéis —, a classe média e a Igreja Católica promoveram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que contou com 300 000 pessoas em São Paulo, pregando contra a ameaça comunista e o governo em um movimento que se espalharia por outras capitais. O suporte religioso, porém, foi se esvaindo com o endurecimento do regime. “Depois de estabelecida a ditadura e a tortura como práticas do Estado, essas lideranças passaram a adotar uma postura de oposição, na qual arriscavam a própria vida”, conta Angela de Castro Gomes, docente da Unirio e da Universidade Federal Fluminense (UFF).
No cenário atual, a despeito do barulho que promove em torno do 7 de Setembro para mobilizar sua base radical, Bolsonaro conta com a reprovação da maior parte dos brasileiros. Pesquisa Quaest da semana passada mostra que mesmo o eleitorado evangélico, um dos esteios do bolsonarismo, não está mais tão ao lado do presidente: 35% avaliam de forma negativa a sua gestão ante 32% que a consideram positiva — entre os católicos, a desaprovação vai a 50% e a aprovação, a 21%. “No passado, havia um componente de pragmatismo daqueles que viam no regime a chance de estabilidade e uma oportunidade para emplacar mudanças de seu interesse”, explica Sérgio Praça, cientista político da FGV. Esse tipo de pragmatismo atua hoje contra Bolsonaro. Como o capitão é justamente a maior fonte de instabilidade no país neste momento (veja reportagem na pág. 24), a permanência dele no poder justificada com o argumento de que isso poderia aplacar turbulências é mais difícil de engolir que a teoria terraplanista.
Para aumentar os obstáculos do capitão, saudoso da época do governo dos militares e que inclui entre seus heróis um notório torturador do regime, aquele país da ditadura também não existe mais. Em 1964, o Brasil somava 80 milhões de habitantes — menos da metade dos 213 milhões de hoje —, quase 40% da população era analfabeta e a maioria residia na zona rural. Hoje ela está concentrada nos centros urbanos, tem mais acesso a bens de consumo e a fontes de informação. Ao mesmo tempo, grandes empresários e os setores da classe média representados por profissionais liberais, advogados, médicos, comerciantes, por exemplo, não estão nada satisfeitos com a estagnação econômica, a volta da inflação e o dólar alto. O historiador Daniel Aarão Reis, da UFF, vê um sólido desapontamento desses segmentos com Bolsonaro e outros políticos: “Os estratos médios e superiores da sociedade em 1964 marcharam inclusive ao lado dos setores populares. As classes médias hoje estão muito mais fraturadas pelo desgosto promovido pelo Bolsonaro”.
No passado, a simpatia pelo golpe contaminou até quem jamais deveria. Alguns veículos de comunicação embarcaram na aventura militar, inclusive manifestando apoio em editoriais como fizeram os jornais O Globo e Folha de S.Paulo. “O que eles não imaginavam é que 1964 seria uma coisa que se viraria contra eles mesmos”, afirma a professora de jornalismo Marialva Carlos Barbosa, da UFRJ, em referência à censura que calou a maioria dos órgãos de mídia. Hoje, a imprensa é tratada como parte da oposição por Bolsonaro e não há um veículo decente que tenha qualquer simpatia pela quebra da institucionalidade. Nascida em 1968, VEJA sempre se colocou contra o autoritarismo e tem na defesa da democracia um de seus pilares editoriais.
Totalmente anacrônica e sem perspectivas de desdobramentos práticos, a movimentação estimulada por Bolsonaro tem ao menos um ponto positivo: o de criar um efeito preventivo, aumentando os alertas de vigília das instituições, observa o historiador Carlos Fico, professor da UFRJ. “O que nós vemos no Judiciário, na imprensa e na maioria da população é uma rejeição ao autoritarismo. O que pode haver é baderna com a leniência de policiais que não controlem a ordem pública por estarem identificados com o bolsonarismo”, avalia. A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, da USP, acrescenta outro fator dificultador, relacionado à trajetória do presidente. “Ele sempre atuou na lei do mínimo esforço e, para dar um golpe, teria de fazer realpolitik, articulando com setores que muito provavelmente não concordam com ele”, diz. Dessa forma, os arroubos de Bolsonaro deverão virar fumaça — como a expelida pelos tanques que causaram constrangimento às Forças Armadas. Ainda bem.
Com reportagem de Caíque Alencar
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754