Na última campanha eleitoral, Luiz Inácio Lula da Silva investiu pesado na política da nostalgia e parte considerável de sua vitória pode ser creditada à lembrança positiva de suas duas primeiras passagens pela Presidência — deixou o Palácio do Planalto em 2010 com recorde de popularidade (oito em cada dez brasileiros aprovavam sua gestão). Ao assumir o novo governo em 1º de janeiro de 2023, a expectativa era de que deixasse de lado o passado para apresentar ao país ideias e projetos para o futuro. Passados dois meses, no entanto, o petista segue olhando para o retrovisor em áreas importantes, como a da infraestrutura. Exemplo disso foi a volta à cena do famigerado projeto do trem-bala entre São Paulo e Rio de Janeiro. Lula lançou a ideia em 2004 e chegou a prometer que ele estaria pronto na Copa do Mundo de 2014. Como se sabe, nada saiu do papel até hoje, a despeito até da criação de uma estatal para cuidar de sua viabilização.
O negócio parecia enterrado para sempre até que, nas últimas semanas, o país foi pego de surpresa com a ressuscitação da ideia. Para tentar tirá-la do papel, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) deu sinal verde à TAV Brasil, empresa criada em 2021 com o propósito de atuar com trens de alta velocidade e cujo capital social é de apenas 100 000 reais. Em troca de colocar o negócio nos trilhos até 2032, a um custo estimado de 50 bilhões de reais, a companhia terá o direito de explorar o serviço por quase um século. O governo federal diz que não vai pôr diretamente dinheiro na empreitada, mas a ideia da TAV é usar 20% do seu capital próprio e 80% de financiamento por meio de vias como fundos de pensão e do BNDES. Conforme o acordo feito com a ANTT, a companhia tem até o fim deste mês para cumprir prazos como assinatura do contrato e apresentação de licenças. Como é bastante improvável a viabilização do negócio (“sonhar é grátis”, escreveu sobre o assunto o jornalista e historiador Elio Gaspari), causa espanto que se tenha gasto energia com o assunto, em meio a tantas prioridades de um país com imensos gargalos que atravancam o progresso. “O governo deveria olhar o portfólio já conhecido e terminar o que está projetado”, diz Paulo Resende, do Núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral.
As trombadas iniciais no setor de infraestrutura não se resumem a ressuscitar o trem-bala. Entrou também no radar do Palácio do Planalto o retorno do famoso Programa de Aceleração do Crescimento. Sim, o PAC também vai voltar. Ele foi lançado em 2007, primeiro ano do segundo mandato de Lula, com investimentos previstos, à época, de meio trilhão de reais em áreas como transporte, energia, habitação e saneamento. Outrora liderado pela “gerentona” Dilma Rousseff à frente da Casa Civil, hoje o novo PAC é capitaneado por Rui Costa — braço direito de Lula e atual titular da pasta — e pela secretária-executiva Miriam Belchior, que atuou como coordenadora-geral do programa a partir de 2010, com a saída da então ministra Dilma do governo para disputar a Presidência. Agora, Lula quer reapresentar o PAC nas próximas semanas, mas sob uma nova sigla. O objetivo é mostrar que o petista já tem algo de relevante a entregar à população em termos de obras.
Como não se constrói nada da noite para o dia, a solução é empacotar o novo PAC com um punhado de obras retomadas do governo anterior. Desde que tomou posse, Lula declarou como uma de suas prioridades a conclusão e a entrega das cerca de 14 000 obras federais paradas e, para tanto, convocou Rui Costa e o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, para articular com governadores e entender as necessidades de cada estado. Coube a André Ceciliano, ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e recém-empossado secretário Especial de Assuntos Federativos de Padilha, coordenar a tarefa.
Entre as prioridades dessa equipe, estão demandas relacionadas a estradas federais, portos, aeroportos, obras do Minha Casa, Minha Vida e ferrovias. “Tudo é prioritário, porque os governadores estão há quatro anos sem parceria com o governo federal”, diz Ceciliano. “As reuniões que fizemos tiveram como objetivo fazer um checklist do que há de projetos, do que falta de licença e do que se tem de orçamento.” O plano de investimento deve ser lançado entre o fim de março e o início de abril, com destaque para o Minha Casa, Minha Vida. “O programa tem desde obras 30% prontas até 90% prontas. São 180 000 unidades habitacionais para serem entregues. O presidente Lula pediu para primeiro terminar essas obras e, segundo, para que sejam preparados áreas e terrenos com infraestrutura, de forma que não faltem recursos para a habitação”, explica Ceciliano.
Outra ideia fixa do petismo é a retomada da indústria naval. Além das promessas feitas durante a campanha, Lula voltou a abordar o tema em uma de suas primeiras visitas oficiais após eleito, no Rio de Janeiro, ocasião em que reafirmou que o governo resgatará os investimentos no segmento no estado. O presidente garantiu que tanto a Petrobras quanto o BNDES atuarão para a recuperação do setor. No passado, os altos investimentos na indústria naval terminaram em escândalos revelados pela Lava-Jato. Estaleiros controlados por empreiteiras envolvidas nas investigações da operação anticorrupção diminuíram as atividades ou nem entraram em operação, com saldo de centenas de desempregados, perdas bilionárias e processos na Justiça.
O próprio PAC, aliás, foi uma grande usina de escândalos. Das dez maiores obras previstas no programa, listadas pela ONG Contas Abertas em 2013, nove se tornaram alvos de investigação criminal — muitas com desdobramentos judiciais até hoje. A maior dessas obras, a refinaria Premium I, que seria construída em Bacabeira, no Maranhão, previa investimentos totais de 41 bilhões de reais, em valores da época, mas não passou da fase de terraplenagem. A Petrobras acabou desistindo do projeto. O TCU apontou uma série de irregularidades, como o fato de o empreendimento ter sido iniciado sem um projeto básico. O saldo foi um prejuízo de 2,1 bilhões de reais para a estatal. Ex-executivos da construtora contratada, a Galvão Engenharia, chegaram a ser condenados pela Lava-Jato em primeira e segunda instâncias e se tornaram colaboradores da Justiça. Outra grande obra do PAC, a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, motivou investigações contra o então ministro de Minas e Energia do governo de Dilma Rousseff, Edison Lobão (MDB), suspeito de receber propina milionária da Odebrecht e da Camargo Corrêa — o que o político sempre negou. O caso foi remetido para a Justiça Federal em Brasília no fim de 2019, onde prossegue, depois que o STF decidiu que Curitiba não era o foro adequado para julgar todos os processos.
Esse histórico de desvios nos últimos anos coincide com o período em que o Brasil vem freando os investimentos em infraestrutura — ou seja, o pior cenário possível: gastou menos do que deveria e parte do que foi gasto acabou drenado pela corrupção. O total de investimentos em 2021 correspondeu a apenas 1,57% do PIB (134 bilhões de reais), o menor patamar da série histórica organizada pela CNI (veja o quadro). Nas últimas duas décadas, o país investiu, em média, aproximadamente 2% do PIB em infraestrutura por ano, menos da metade do que o necessário. Programas bem-sucedidos nos últimos governos foram quase exceção. Salvaram-se exemplos como o desenvolvimento da tecnologia para a exploração do pré-sal dos anos petistas e as concessões e privatizações de portos e aeroportos implementadas pelas gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
A despeito do histórico de corrupção em obras e dos preocupantes sinais de nostalgia por projetos antigos, ainda existe certo otimismo, com a esperança de que Lula olhe para frente, mantendo a agenda de concessões e PPPs (parcerias público-privadas) na área de infraestrutura. “Nós pleiteamos que essa fosse uma agenda de Estado, e não de governo, porque os estudos para uma concessão levam dois, três anos e não podem se perder com a troca de presidente. O governo atual tem acenado para isso e manteve a estrutura”, diz Wagner Ferreira Cardoso, secretário-executivo de Infraestrutura da CNI. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já atuou no passado na elaboração de normas para as PPPs e se cercou de nomes que transmitiram alguma tranquilidade ao mercado, como o número 2 da pasta, o economista Gabriel Galípolo. Outro entusiasta do modelo é o vice-presidente, Geraldo Alckmin, que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Alckmin fez privatizações importantes quando governou São Paulo, desde rodovias até linhas do metrô.
Além das biografias dos integrantes da gestão, há a avaliação de que o corpo técnico composto de servidores de órgãos do governo especializou-se nos últimos anos na elaboração de projetos de concessões e PPPs. “O governo é um transatlântico e não se dá cavalo de pau em transatlântico. Não se desmonta esse ecossistema de técnicos com facilidade”, diz Sandro Cabral, professor de estratégia e gestão pública do Insper. Na visão dele, a despeito dos discursos para a plateia, o PT se tornou muito pragmático. “Basta ver que recentes governos petistas na Bahia, no Ceará e no Piauí privatizaram metrô, hospitais e saneamento”, lembra. Com base nisso, a expectativa é a de que ideias como a volta do trem-bala fiquem para trás, cedendo lugar a concessões com viabilidade comercial e capacidade de resolver os problemas mais urgentes. O Brasil precisa entrar no trilho certo.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831