Na noite da terça-feira 18, Sergio Moro fez sua estreia no Programa do Ratinho. A participação na atração popularesca fazia parte do esforço para reforçar a boa imagem pública que o hoje ministro da Justiça e da Segurança Pública consolidou como juiz da Lava-Jato em Curitiba — imagem que saíra trincada das revelações, feitas pelo site The Intercept Brasil, de que Moro e o procurador Deltan Dallagnol mantinham, por celular, conversas que extrapolariam os limites legais da colaboração entre um juiz e a parte acusadora. Ratinho bem que tentou colaborar com a contenção de danos: chamou Moro de “herói sem capa” e deu divulgação a teorias conspiratórias contra o americano Glenn Greenwald, jornalista responsável pelo The Intercept. Mas, gravada no dia anterior, segunda-feira, a entrevista já foi ao ar esvaziada: na terça, The Intercept divulgou novos diálogos entre Moro e Dallagnol. Uma frase de Moro, em particular, parece sugerir que a Lava-Jato era leniente com os tucanos: o então juiz diz que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é “alguém cujo apoio é importante”, e que por isso não seria aconselhável melindrá-lo com ações judiciais.. Essa fala teve grande repercussão — inclusive no depoimento de nove horas que Moro deu, na quarta-feira, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado — e certamente abre mais uma rachadura na reputação de Moro. A nova leva de mensagens, porém, é mais danosa para o Ministério Público (MP) do que para o ex-juiz: uma conversa entre procuradores indica a possibilidade de eles terem deixado de investigar possíveis irregularidades no Instituto Fernando Henrique Cardoso.
Os dois casos não guardam relação direta. A consideração que o juiz demonstra com os melindres de FHC não tem toda a gravidade jurídica que a frase, isolada, sugere. Na troca de mensagens com Dallagnol, em 2017, Moro estava falando de um caso que já não estava na sua alçada. Emílio Odebrecht havia dito, em sua delação, que sua empreiteira fizera doações, via caixa dois, para as duas campanhas presidenciais de FHC, em 1994 e 1998. Essa parte da delação foi encaminhada à Procuradoria-Geral da República, em Brasília, que por sua vez remeteu o caso para o MP de São Paulo, que resolveu investigá-lo. Moro viu uma reportagem do Jornal Nacional sobre a delação, e por isso perguntou a Dallagnol a respeito. O procurador informou ao juiz que o MP paulista seguira investigando os alegados crimes de campanhas dos anos 90 sem considerar o fato de que já estavam prescritos, provavelmente para “dar recado de imparcialidade” (entenda-se: para mostrar o mesmo rigor com crimes de petistas e de tucanos). É então que Moro diz que esse curso de ação seria “questionável”, pois “melindra” quem apoia a Lava-Jato. A conversa, portanto, não traz consequência para a investigação sobre o alegado caixa dois de FHC: Moro não era juiz do caso, que, de resto, estava prescrito. Fica evidente, no entanto, um cálculo político que não é próprio de um magistrado, que, em seu ofício diário, deve interpretar e aplicar a lei, pelo menos em tese, sem considerações sobre quem “apoia” seu julgamento, ou sobre quem sairá “melindrado” por ele.
O Intercept divulgou ainda diálogos mantidos, no aplicativo Telegram, pela turma de procuradores de Curitiba. Moro não aparece nessas conversas. Em 17 de novembro de 2015, o procurador Roberson Pozzobon chamou os colegas em um dos grupos da força-tarefa de Curitiba. Estava animado com um relatório que recebera da Polícia Federal no qual se listavam transações financeiras das empresas do grupo Odebrecht com agentes públicos e partidos políticos no período de 2004 a 2014. O levantamento apontou pagamentos no valor de quase 4 milhões de reais feitos à Lils, empresa de palestras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e ao Instituto Lula, no período de 2011 a 2014. Na contabilidade da Construtora Norberto Odebrecht também foram identificados pagamentos realizados ao Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC), no valor de 975 000 reais.
Diante das informações, Pozzobon sugeriu que a força-tarefa abrisse uma investigação dos pagamentos feitos não só ao Instituto Lula mas também ao iFHC. Reaparece a preocupação de mostrar imparcialidade: “Assim ninguém poderia, indevidamente, criticar nossa atuação como se tivesse viés partidário”. As informações referentes ao iFHC são qualificadas por Pozzobon como uma “fratura exposta”. Ele compartilha, no grupo de procuradores, dois e-mails constantes do relatório da PF — mensagens trocadas em 2014 pela secretária do iFHC com um funcionário de uma empresa ligada à Braskem (braço petroquímico da Odebrecht), referentes a um pagamento que deveria ser feito ao instituto do tucano — e que cheirava a algo irregular. Outro procurador, Paulo Galvão, entusiasma-se: “P…, bomba isso”. Pozzobon sugere operações de busca e apreensão nos institutos dos dois ex-presidentes. Mas a conversa muda de tom quando o procurador Galvão faz um reparo: e se os pagamentos ao iFHC fossem apenas crimes fiscais? Se a investigação do iFHC resultasse apenas em crime tributário, pondera o procurador Diogo Castor, a defesa do Instituto Lula e da Lils poderia alegar os mesmos argumentos para livrar-se da acusação de caixa dois e corrupção. Pozzobon concorda: “Temos que ter um bom indício de corrupção do fhc/psdb antes”. Dallagnol, que acaba entrando na conversa mais tarde, arremata: “Claro. Será pior fazer PIC (procedimento investigatório), BA (busca e apreensão), e depois denunciar só o PT por não haver prova”. VEJA perguntou à força-tarefa de Curitiba se houve investigação para apurar as doações de 975 000 reais feitas ao iFHC pela Odebrecht entre 2011 e 2012. Não obteve resposta. Se de fato a investigação foi abandonada, configura-se a seletividade do MP. E isso também é grave. “Não se pode selecionar quem será investigado e quem não é. O MP é obrigado a investigar e processar todo mundo, se há indício de irregularidade”, afirma João Paulo Martinelli, professor de direito penal do Instituto de Direito Público.
Desde que The Intercept começou a divulgar os diálogos do juiz e da força-tarefa de Curitiba, Moro vem insistindo nos mesmos pontos: a autenticidade dos diálogos não foi atestada (embora ele não desminta especificamente nenhum trecho dos diálogos), as mensagens foram obtidas de forma ilegal, e tudo ali estaria dentro da relação “normal” entre juiz e procurador. Repisou todos esses pontos no Senado, que foi relativamente brando na inquirição ao ministro. Mas o último ponto segue duvidoso: a colaboração demasiado próxima entre juiz e procurador já está configurada nos diálogos revelados até aqui. “No modelo do Judiciário brasileiro, o juiz tem de ser uma figura inerte, não pode aliar-se a uma parte ou a outra”, afirma o juiz aposentado Walter Maierovitch. “As mensagens deixam clara a promiscuidade entre o ex-juiz Moro e o procurador Dallagnol.” E essa ilegalidade não é uma questão de opinião. Ela aconteceu.
Com reportagem de Edoardo Ghirotto
Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640
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