O futuro do projeto político da Igreja Universal após derrota de Crivella
O golpe nos sonhos de poder foi duro. Mas, na contagem geral, seu partido, o Republicanos, sai fortalecido
Fechadas as urnas, o Republicanos, partido político que pede a bênção à Igreja Universal do Reino de Deus, teve motivo para erguer as mãos para o céu. Mobilizando o eleitorado evangélico e acolhendo lideranças regionais promissoras, a legenda conquistou 211 prefeituras, o dobro do que tinha, entre elas as de Sorocaba e Campinas, importantes polos econômicos do interior de São Paulo, e a de Vitória, capital do Espírito Santo, onde Delegado Pazolini, deputado estadual de primeiro mandato, derrotou o petista João Coser. Com esse capital, o Republicanos entrou para o time dos dez partidos mais influentes do país, mas nem tudo na estratégia deu certo. No Rio de Janeiro, Marcelo Crivella foi derrotado por Eduardo Paes e a sigla da Universal, além de perder o comando da segunda maior cidade brasileira, ainda viu seu político mais conhecido ser fragorosamente rejeitado pelos eleitores cariocas.
Sobrinho de Edir Macedo, líder máximo e vitalício da IURD, o bispo licenciado Crivella foi forjado para ser o rosto político da igreja. Sob a tutela do tio poderoso, obteve vitórias sucessivas nas urnas. Conquistou uma cadeira no Senado, ganhou um ministério no governo de Dilma Rousseff (da Pesca, mas ministério mesmo assim) e conquistou a prefeitura do Rio. Nos bastidores da igreja, esperava-se que, a partir dessa vitrine, Crivella alçasse voo e concretizasse o sonho do bispo Macedo — expresso em livro — de eleger o primeiro presidente da República evangélico do país. A cruzada ia tão bem que ninguém se preocupou em preparar um plano B. Deu no que deu: quatro anos de gestão desastrosa, marcada pelo aparelhamento dos órgãos da prefeitura por obreiros da igreja e ainda pela contratação de funcionários pagos com dinheiro público para afugentar equipes de reportagem que denunciavam os desmandos na área da saúde, os “Guardiões do Crivella” — e o bispo fora da vida pública, ao menos temporariamente.
O futuro do prefeito que sai é incerto. Uma ala do partido quer que ele volte às pregações nas madrugadas da Rede Record, para não perder contato com o eleitorado. Outra prefere que ele utilize o capital político restante — nada desprezíveis 913 700 votos — para se eleger deputado federal daqui a dois anos. Por que deputado federal? Porque Crivella tem potencial para puxar votos e ampliar a bancada do Republicanos e, ao mesmo tempo, porque o partido fica, assim, à vontade para apoiar outra candidatura ao Senado — quem sabe a de Hamilton Mourão (PRTB), que, ao que tudo indica, não será novamente vice de Jair Bolsonaro. “O que mais importa para o Republicanos a partir de agora é aumentar a bancada federal, para ter mais tempo de propaganda eleitoral e um fundo partidário mais recheado”, afirma um aliado do grupo de Edir Macedo.
A dificuldade de ungir rapidamente um “novo Crivella” passa pela formação do Republicanos, partido que, embora sustentado por fiéis e pastores da Universal, abarca políticos de outras igrejas e até gente sem filiação religiosa. A relação é de troca: o Republicanos oferece a fidelidade de um rebanho de quase 2 milhões de pessoas e toma conta das máquinas administrativas dos municípios. Fica difícil, nesse contexto, encontrar figuras carismáticas, com potencial de se destacar na multidão, e, ao mesmo tempo, de confiança da cúpula. Enquanto o partido busca alternativas e espera a poeira anti-Crivella baixar, a ordem é focar as batalhas do presente.
Como bom representante do pragmático Centrão, o Republicanos negocia seu apoio à reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. A relação entre o presidente e o partido do bispo Macedo já teve dias melhores. A campanha de Crivella avalia que o apoio político vindo do Planalto foi tímido — resumiu-se a um vídeo em que Bolsonaro afirma que conhece o prefeito há muito tempo. Isso não impediu que o bispo o agraciasse com o título de “herói vivo” no discurso em que reconheceu a derrota.
Outro ponto de atrito envolve a sucessão na chefia da Câmara dos Deputados, no início do ano que vem. A bancada evangélica esperava emplacar o nome do presidente nacional do Republicanos e bispo licenciado da IURD, Marcos Pereira, mas o Planalto deve chancelar Arthur Lira (PP). Inconformado, Pereira chegou a afirmar que o Republicanos não abrigará o presidente da República, atualmente sem partido, porque não aceita perder o controle da legenda, mas a ameaça não tem muita substância. O Republicanos permanece, sim, sendo uma opção para Bolsonaro — até porque dois de seus filhos, o vereador Carlos e o senador Flávio, são filiados a ele. “A derrota de Crivella fez a Universal voltar algumas casas no jogo, mas a igreja continua forte politicamente”, avalia Lívia Reis, cientista social do Instituto de Estudos da Religião e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E as preces do bispo Macedo pela eleição do primeiro presidente evangélico seguem firmes e fortes.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716