O futuro incerto de Sergio Moro depois da derrota no STF
Para o bem ou para o mal, a parcialidade do ex-juiz provocou repercussões em várias esferas, da Câmara ao campo jurídico
Há exatos sete anos, em março de 2014, a força-tarefa da Lava-Jato realizava sua primeira fase. O alvo era um posto de gasolina no centro de Brasília, onde funcionava uma casa de câmbio, suspeita de lavar dinheiro para o crime organizado. A investigação levou à descoberta do maior esquema de corrupção da história, à prisão de empresários de peso e políticos influentes e a uma fissura na tradição de impunidade dos poderosos. No meio do caminho, porém, vários limites foram ultrapassados. A consequência veio como bomba na tarde da última terça-feira, 23. Responsável pelos principais e mais importantes processos do caso, Sergio Moro acompanhou o julgamento que implodiu sua biografia como magistrado pelo celular, enquanto participava de uma reunião da consultoria Alvarez & Marsal, a empresa que o contratou como sócio depois que ele pediu demissão do Ministério da Justiça. Seu WhatsApp não parou a tarde toda.
Ser imparcial é uma condição elementar para o exercício da magistratura. Num habeas-corpus impetrado no STF em 2018, o ex-presidente Lula — condenado por Moro a nove anos e seis meses de prisão por ter recebido um apartamento tríplex como pagamento de propina — argumentou que o juiz foi tendencioso ao julgar o seu processo. Para a defesa, algumas evidências não deixavam dúvidas sobre a parcialidade: a condução coercitiva do ex-presidente para prestar depoimento, a interceptação de ramais telefônicos de advogados do petista, a divulgação de conversas gravadas, a revelação de trechos de uma delação premiada às vésperas das eleições e, por fim, o fato de Moro ter aceitado o convite para assumir o cargo de ministro no governo Bolsonaro. Os advogados do petista alegaram que havia uma motivação política por trás das ações do magistrado. Por 3 votos a 2, a Segunda Turma do tribunal concordou com os argumentos.
“Algum dos senhores aqui compraria um carro do Moro, algum dos senhores seria capaz de comprar um carro do Dallagnol? São pessoas de confiança?”
Ministro Gilmar Mendes, que votou pela suspeição
Para os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, que votaram pela suspeição, ficou demonstrado também que Moro agiu de maneira ilegal em vários momentos do processo. “A combinação de ação entre o Ministério Público e o juiz encontra guarida em algum texto da Constituição? Pode-se fazer essa combinação? ”, disse o ministro Gilmar Mendes, ao reafirmar a sua convicção sobre a parcialidade do juiz. “Pode até ser que isso se vale para outros objetivos, mas o certo é que todo mundo tem o direito de imaginar-se e acreditar-se julgado, processado, investigado por uma contingência do Estado e não por um voluntarismo de um determinado juiz ou de um tribunal”, concordou a ministra Cármen Lúcia, que foi contra a suspeição na primeira etapa do julgamento, em dezembro de 2018, e na terça-feira mudou o voto.
“No caso em exame, as provas são materiais obtidos por hackers. Tenho que são absolutamente inaceitáveis tais provas, por serem frutos diretamente de crimes. Não se combate crime cometendo crime.”
Ministro Kassio Marques, que votou contra a suspeição
Nesse intervalo de tempo, foram tornadas públicas as mensagens hackeadas dos celulares de Moro e dos procuradores da força-tarefa. Embora reproduzidos direta e indiretamente pelos ministros, os diálogos não foram utilizados formalmente como prova, mas, sem dúvida, influenciaram no processo de convencimento. Em alguns casos, foram usados para justificar até mesmo o voto contrário. “No caso em exame, as provas são materiais obtidos por hackers. Tenho que são absolutamente inaceitáveis tais provas, por serem frutos diretamente de crimes”, criticou o ministro Kassio Nunes Marques, que havia pedido vista do processo fazia duas semanas. Nos corredores do Supremo comenta-se que o voto de Nunes Marques, na verdade, foi fruto direto de pressão do Planalto, que anda assustado com o desempenho de Lula em pesquisas internas.
“Todo mundo tem o direito de imaginar-se e acreditar-se julgado, processado, investigado por uma contingência do Estado e não por um voluntarismo de um determinado juiz.”
Ministra Cármen Lúcia, que votou pela suspeição
A questão agora é saber como Moro vai reagir a essa derrota. Em nota, o ex-juiz disse que a sentença de condenação de Lula foi confirmada por duas outras instâncias, afirmou que o petista só foi preso porque o próprio STF lhe negou um habeas-corpus preventivo e defendeu o legado da Lava-Jato como instrumento contra a impunidade de crimes de colarinho-branco. “O Brasil não pode retroceder e destruir o passado recente de combate à corrupção e à impunidade e pelo qual foi elogiado internacionalmente. A preocupação deve ser com o presente e com o futuro para aprimorar os mecanismos de prevenção e combate à corrupção e com isso construir um país melhor e mais justo para todos”, declarou. Há quem vislumbre que, ao fulminar o maior ícone da Lava-Jato, o Supremo pode ter gestado um candidato. “Essa decisão do STF é um incentivo para o ex-juiz ingressar mais ativamente no debate público para defender seu legado à frente das investigações”, avalia o cientista político do Insper Fernando Schüler. “Uma pré-candidatura, por exemplo, pode gerar visibilidade e recolocá-lo no debate para contestar as acusações que lhe são feitas”, conclui.
Submerso desde que deixou o Ministério da Justiça acusando Jair Bolsonaro de interferir indevidamente na Polícia Federal, há quase um ano, Sergio Moro aparece nas pesquisas como o único nome capaz de bater nas urnas o presidente da República em 2022. O ex-juiz nunca admitiu a possibilidade de uma eventual candidatura — também nunca a afastou completamente. Mas, se decidir ingressar definitivamente na política, viverá uma situação peculiar: ele provavelmente terá como adversários o seu ex-chefe e seu antigo réu. O ex-presidente já havia sido reabilitado politicamente por decisão individual do ministro Edson Fachin, que transferiu todos os processos contra o petista para a Justiça Federal em Brasília, anulou as sentenças e, com isso, devolveu ao petista os direitos políticos. Uma pesquisa divulgada logo depois dessa decisão de Fachin mostra Lula e Bolsonaro tecnicamente empatados na disputa eleitoral. Moro aparece em terceiro. Em simulações de segundo turno, o ex-juiz surge à frente do presidente.
Para o bem ou para o mal, a parcialidade de Moro provocou repercussões em várias esferas. No Congresso, a suspeição do ex-ministro foi comemorada por políticos de diferentes partidos. O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), disse que “o Estado Policial, para o qual a Lava-Jato descambou em certos momentos, lamentavelmente, com suas parcialidades, seletividade e perseguições, jamais poderá também merecer o perdão da história”. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, escreveu em uma rede social que, “ao proclamar que Sergio Moro nunca foi juiz imparcial, foi carrasco, o STF fez mais do que garantir a Lula os direitos roubados pela Lava-Jato”. O ex-presidente do Senado Renan Calheiros (MDB-AL) disse que Moro “é faccioso, perseguiu o ex-presidente Lula” e, por isso, deveria ser “preso”.
No campo jurídico, a decisão do Supremo sobre Lula e agora a suspeição do ex-juiz vão provocar também uma intensa movimentação envolvendo outros condenados da Lava-Jato. Réus como o ex-deputado Eduardo Cunha, o ex-tesoureiro do PT João Vaccari e o ex-governador do Rio Sérgio Cabral apostam que podem se beneficiar da mesma interpretação do STF. Se Moro agiu movido por intenções políticas no caso do ex-presidente, teria agido da mesma maneira com relação aos demais. Agora, os advogados estudam brechas para pedir a extensão da medida a seus cliente. “É preciso não confundir as coisas. Eventuais excessos não significam que não ocorreu o que todo mundo sabe: um quadro de corrupção estrutural e sistêmica que abalou o país. Provas fartas, confissões, devolução de dinheiro etc. Pelo bem do Brasil, é preciso continuar o esforço de desnaturalizar as coisas erradas”, disse a VEJA o ministro do STF Luís Roberto Barroso. Sete anos depois, a única coisa da Lava-Jato que continua no mesmo lugar depois de tantas reviravoltas é o posto de gasolina onde tudo começou. A casa de câmbio não existe mais. No local funciona hoje uma concorrida lavanderia — de roupas.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731