O novo escândalo bilionário do orçamento secreto
Levantamento de VEJA revela que, apesar das restrições da Lei das Eleições, 1,3 bilhão de reais escoaram pelo sistema entre julho e outubro
Tratadas por alguns especialistas em gestão como um dos capítulos mais problemáticos no uso do dinheiro público dos últimos tempos, as famigeradas emendas de relator proliferaram e ganharam o merecido apelido de orçamento secreto pela falta de transparência e de critérios técnicos para sua distribuição. Com as restrições legais para que o governo transfira recursos para estados e municípios nos três meses anteriores às eleições, de forma a não desequilibrar a disputa à custa da máquina federal, era de esperar um freio na prática. Não foi o que aconteceu. A despeito da legislação, o dinheiro continuou jorrando. Segundo levantamento exclusivo feito por VEJA, 1,3 bilhão de reais escoaram pelo sistema entre julho e outubro (veja o quadro abaixo), sendo a maioria com destino a prefeituras comandadas por aliados bolsonaristas.
A movimentação ocorre apesar de a Lei das Eleições, de 1997, proibir o pagamento de transferências voluntárias (como as emendas de relator) da União para os demais entes da federação nos três meses que antecedem o pleito. A regra prevê duas exceções: os pagamentos podem ser efetivados no período eleitoral se forem para dar continuidade a obras iniciadas previamente ou se forem para ajudar municípios em situação de emergência ou de calamidade pública oficialmente decretada. Afrontas à norma eleitoral por desobediência a esses critérios sempre foram registradas pontualmente, mas neste ano há indícios de que podem ter atingido uma escala inédita devido ao orçamento secreto.
Entre os ministérios que mais pagaram essas emendas no período eleitoral estão Saúde, Educação, Desenvolvimento Regional e Cidadania. Nem todo o valor bilionário pago está sob suspeita, porque as pastas podem argumentar que parte dos repasses foi destinada a obras que já estavam anteriormente em andamento. Nesses casos seria comum que tivesse havido o empenho (fase inicial da execução orçamentária) antes de julho. Contudo, uma parte considerável das emendas foi empenhada e efetivamente paga já dentro do período de defeso eleitoral, um indicativo de que não havia obra em execução antes, como estipula uma das exceções da legislação.
A situação mais complicada é a do Ministério da Cidadania, responsável pelas políticas de assistência social, que distribuiu 317 milhões de reais do orçamento secreto de julho a outubro. Considerando somente o conjunto de emendas que foram empenhadas e pagas dentro desse período, houve 565 repasses para diferentes municípios num total de 151,1 milhões de reais — pagamentos com indícios contundentes de que não se enquadram na exceção da lei. Para justificá-los, a pasta, comandada desde março por Ronaldo Vieira Bento, encontrou uma saída jurídica heterodoxa: misturou as emendas de relator com a PEC 123, a PEC Kamikaze aprovada em julho com a finalidade de autorizar benefícios sociais específicos — como o aumento temporário do Auxílio Brasil e a ajuda para caminhoneiros e taxistas.
O argumento foi construído pela Consultoria Jurídica do ministério, órgão ligado à AGU (Advocacia-Geral da União), que firmou o seguinte entendimento: como a PEC Kamikaze colocou o país inteiro em situação de emergência por causa da alta dos preços dos combustíveis, logo, a Cidadania também poderia pagar emendas de relator no período eleitoral, pegando carona no regime de excepcionalidade que abriu as portas aos benefícios sociais para se enquadrar em uma das exceções da Lei das Eleições. Para não se comprometer inteiramente com a tese, no entanto, a Consultoria Jurídica fez uma ressalva: recomendou que, para cada emenda paga, um técnico juntasse uma manifestação atestando que ela não afetaria o equilíbrio das eleições.
Um dos problemas desse puxadinho jurídico é que parlamentares e servidores do Congresso que trabalharam na elaboração do texto final da PEC Kamikaze são enfáticos ao afirmar que seus efeitos se restringem aos benefícios sociais previstos nela, não se estendendo às emendas. Segundo, não existem critérios objetivos para um servidor da área técnica aferir se o pagamento de uma emenda interfere ou não na disputa eleitoral. Procurado pela reportagem de VEJA reiteradas vezes, o Ministério da Cidadania não quis informar quem são os servidores que estão assinando esses atestados nem quais foram seus embasamentos.
Um dos municípios beneficiados, a prefeitura de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, foi contemplada com o maior valor do orçamento secreto vindo do Ministério da Cidadania, empenhado em 8 de julho e pago em 29 de agosto, ou seja, tudo em pleno período eleitoral: 5 milhões de reais. No dia 3 de setembro, o secretário municipal de Assistência Social, Edinaldo Basílio, foi ao Twitter anunciar o “início de reformas dos equipamentos” da cidade. “Gratidão a Deus pela dedicação do nosso prefeito”, escreveu. O prefeito em questão é Capitão Nelson (Avante), um dos principais aliados de Bolsonaro no estado, que esteve ao lado do presidente em um comício na última terça, 18. Em São Gonçalo, Bolsonaro obteve 50,09% dos votos no primeiro turno, contra 42,4% de Lula (PT). De acordo com a prefeitura, que não respondeu qual parlamentar fez a indicação (informação indisponível nas bases de dados), o dinheiro será usado para custeio do Sistema Único de Assistência Social, “diante do reforço urgente do atendimento às demandas sociais em caráter de emergência, causadas pela pandemia”. A emergência que fundamenta o repasse pelo ministério, porém, tem formalmente outra causa: a alta do preço do petróleo.
A Prefeitura de Santa Luzia, no Maranhão, foi outra beneficiada com uma emenda gorda da Cidadania: 4 milhões de reais, empenhados em 2 de setembro e pagos quatro dias depois. A prefeita, França do Macaquinho, do PP, um dos principais partidos da base de Bolsonaro, preside o PP Mulher no estado. O município não informou em que usará o recurso nem quem o indicou. Penedo, em Alagoas, vem em seguida na lista de beneficiados. A cidade recebeu 2 milhões de reais da Cidadania por indicação do deputado Marx Beltrão (PP-AL), segundo a prefeitura. O parlamentar é próximo de Lira e faz campanha para Bolsonaro. O município afirmou que a verba irá para o custeio dos serviços do Programa de Atenção Integral à Família.
Os critérios de distribuição da gastança aos aliados já fazem parte de uma certa tradição do orçamento secreto. Em junho, o relator do Orçamento de 2022, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), pediu aos ministérios a liberação de quase 3,2 bilhões de reais para ações em municípios indicados por seus colegas. Partidos da base e outros aliados de Bolsonaro foram favorecidos com 89,5% (2,9 bilhões de reais) desse bolo. O próprio PSD de Hugo Leal foi um dos principais beneficiários no mês de junho, indicando 544 milhões de reais, atrás do PL, legenda de Bolsonaro, que indicou 637 milhões de reais. As negociações passam por políticos graúdos, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI).
Previsivelmente, aos poucos, o que tem cheiro de escândalo vai se transformando em escândalo de fato. Na semana passada, a Polícia Federal deflagrou a primeira operação para coibir desvios das emendas de relator — no caso, pagas pelo Ministério da Saúde em 2021. Na ação, foram presos dois homens que participaram do suposto esquema que fraudou atendimentos do SUS no Maranhão. Outra grande frente de investigação tem tudo agora para ser aberta à luz das enormes suspeitas em torno da gastança dos últimos meses, em meio às campanhas. Comprovadas as irregularidades, a Justiça Eleitoral pode suspender os pagamentos e responsabilizar os políticos e gestores envolvidos. Basta seguir o dinheiro.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812