O prisioneiro 126125
O prontuário do ex-ministro Geddel Vieira Lima revela que ele é indisciplinado, encrenqueiro e já foi punido por tentar subverter a ordem na Papuda
As visitas aos presos do bloco 5 do centro de detenção provisória da Papuda, em Brasília, começam às 9 da manhã, todas as quartas e quintas-feiras. Detido preventivamente há quase 600 dias, o ex-ministro Geddel Vieira Lima já conhece bem o protocolo. É permitido receber comida, bebida, alguns itens de higiene pessoal e até 150 reais em dinheiro por semana. Em 26 de junho do ano passado, um irmão de Geddel, Lúcio Vieira Lima, então deputado federal, lhe fez uma visita. Os dois se encontraram na sala do chefe de pátio, conversaram por uma hora e, emocionados, despediram-se com um abraço, como de costume. Lúcio dirigiu-se à saída, enquanto Geddel caminhava em direção à cela. Nesse momento ele foi informado de que seria submetido a uma revista íntima — procedimento em que o preso é obrigado a se despir completamente para que os carcereiros verifiquem se ele esconde algo no corpo. Geddel protestou, indignado com o tratamento humilhante e injustificado. O episódio terminou em confusão.
Descontrolado e aos gritos, o ex-ministro tirou a camisa e a bermuda e, nu, avançou em direção a um dos agentes: “Quer ver meu pinto, seu p…?!”. Houve correria no pátio. Lúcio, que estava de saída, voltou para ver o que acontecia. Nervoso, o ex-ministro foi contido por um segundo carcereiro, vestiu-se e foi levado para o seu pavilhão, onde ficam os presos considerados vulneráveis, como políticos, idosos e os que são alvo de algum tipo de ameaça. Mas a confusão não terminara. A direção da penitenciária, informada sobre o episódio, determinou que Geddel fosse levado a uma delegacia de polícia e orientou os agentes a registrar queixa contra ele por crime de desacato à autoridade. Quando soube disso, o ex-ministro pediu desculpas aos carcereiros e propôs encerrar o assunto sem o boletim de ocorrência. Não foi atendido. Geddel ficou ainda mais irritado, avançou novamente sobre os carcereiros e acabou algemado.
Na delegacia, o ex-ministro preferiu ficar em silêncio. Disse que só daria sua versão sobre a acusação de desacato na presença de um advogado. A polícia abriu um inquérito. O salseiro ainda teria mais um desdobramento. De volta à Papuda, Geddel soube que seria punido com dez dias de isolamento, sem acesso à cantina, sem poder ver televisão e proibido de receber visitas. Em protesto contra a penalização, decidiu iniciar uma greve de fome. Alegou que não podia ingerir a mesma comida que os demais presos. Precisava comprar suas refeições na cantina. “O interno insiste em ter acesso à cantina”, registraram os agentes em relatório encaminhado à direção da penitenciária. Os carcereiros anotaram: “Como o fato narrado é incomum na rotina carcerária, fizemos um documento de controle de entrega de refeições e solicitamos que o interno o assinasse para que ficasse registrado que ele se recusa a receber a alimentação”. Geddel não assinou o documento e também rejeitou o banho de sol.
A história, contada no prontuário do ex-ministro, ao qual VEJA teve acesso, mostra a vida conturbada que ele tem levado na prisão. As 250 páginas que trazem anotações sobre a rotina do detento número 126125 compõem um dossiê com casos de indisciplina, como o descrito acima, laudos médicos e psiquiátricos, conflitos com outros internos, decisões judiciais, pareceres do Ministério Público, petição de advogados, movimentações e até um histórico das aulas frequentadas pelo ex-ministro. Geddel, de acordo com os carcereiros, tem problemas em lidar com a hierarquia e não costuma aceitar ordens. Com comportamento rebelde, vive metendo-se em confusões. Em março do ano passado, ele estava na fila da cantina quando recebeu um esbarrão de um detento. O ex-ministro reclamou, disse que aquilo era desnecessário e que bastaria o colega pedir licença que ele o deixaria passar. O detento não gostou da lição de bons modos, voltou e deu outro empurrão em Geddel — e, depois, pediu licença. “Agora está bom?”, perguntou, em tom desafiador. O desentendimento quase terminou em briga. De novo, o caso foi parar na delegacia, onde o ex-ministro acabou por não registrar a queixa de agressão, com a justificativa de que recebera um pedido de desculpa.
“Geddel vem demonstrando comportamento inadequado, inclusive com fortes indícios da prática de crime e da tentativa de subverter a ordem e a disciplina penitenciárias”, escreveu a juíza Leila Cury, da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, em um despacho anexado ao dossiê. No ano passado, ela determinou a transferência do ex-ministro para a ala de segurança máxima da Papuda, onde, em tese, ficam os presos mais perigosos. A decisão foi tomada depois que a Polícia Civil levantou a suspeita de que alguns detentos, incluindo Geddel, estariam recebendo tratamento privilegiado, usufruindo regalias, como alimentação especial. Com a autorização da Justiça, os agentes fizeram uma busca na cela do ex-ministro, mas não encontraram nada. A defesa classificou a transferência de Geddel como abuso de poder e pediu o retorno ao regime anterior, mas ainda assim a Justiça o manteve na ala de segurança máxima.
“Os documentos que recebi revelam que Geddel vem demonstrando comportamento inadequado, inclusive com fortes indícios da prática de crime e da tentativa de subverter a ordem e a disciplina penitenciárias.”
Leila Cury, juíza da Vara de Execuções Penais
Em outra anotação do prontuário, um agente conta ter percebido que o ex-ministro estava agindo de maneira estranha na cela. Por prevenção, decidiu-se fazer uma inspeção no local. Foram encontrados onze tipos de medicamento, mais de 200 comprimidos ao todo. Havia relaxantes musculares, calmantes, remédios para insônia e antidepressivos. Um laudo médico anexado ao dossiê constatou que “se todas essas substâncias fossem ingeridas em sua totalidade poderiam causar a morte”. O ex-ministro chegou a ser levado ao Instituto de Medicina Legal para ser submetido a um exame, mas não permitiu ser periciado por “determinação de seu advogado”. Com isso, não foi possível saber se seu comportamento estranho tinha alguma relação com a ingestão excessiva de medicamentos, como suspeitaram os carcereiros. Os remédios foram recolhidos, e até hoje não se tem conhecimento de como eles chegaram à cela.
Formado em administração, Geddel Vieira Lima, de 60 anos, começou a carreira política como assessor da Casa Civil na prefeitura de Salvador, em 1988. Filiou-se ao MDB na década de 90 e exerceu cinco mandatos como deputado federal. Durante o governo Lula, comandou o poderoso Ministério da Integração Nacional. Na gestão de Dilma Rousseff, foi vice-presidente da Caixa Econômica Federal. Nas eleições de 2014, concorreu a uma vaga no Senado, mas foi derrotado. O último cargo público que ocupou antes da prisão foi o de ministro da Secretaria de Governo da Presidência da República, um posto politicamente influente. Acusado de lavagem de dinheiro e associação criminosa, Geddel foi preso preventivamente depois que a Polícia Federal apreendeu 51 milhões de reais escondidos num apartamento em Salvador. Os peritos encontraram impressões digitais de Geddel nos sacos plásticos que acondicionavam o dinheiro.
“Geddel vem se comportando de forma indisciplinada e vem se recusando ao recebimento de parte das quatro refeições diárias (…), insistindo em ter acesso à cantina.”
Leila Cury, juíza da Vara de Execuções Penais
No fim do ano passado, a defesa de Geddel tentou pela última vez conseguir sua liberdade. Alegou que, com o término da instrução da ação penal, a prisão preventiva não mais se justificava. A procuradora-geral Raquel Dodge manifestou-se contra: “Para evitar o cumprimento da pena só lhe restaria a fuga, exatamente como fez recentemente o italiano Cesare Battisti, e essa opção não é mera conjectura, notadamente porque Geddel Quadros Vieira Lima já deu mostras suficientes do que, em liberdade, é capaz de fazer para colocar em risco a ordem pública e vulnerar a aplicação da lei penal”. O pedido de habeas-corpus foi negado pelo Supremo Tribunal Federal. Nas alegações finais no processo, a procuradora-geral pediu que Geddel seja condenado a oitenta anos de prisão. “A multiplicidade de atos criminosos de lavagens revela uma personalidade voltada ao crime, à lesão à moralidade, à administração da Justiça e da própria ordem econômica”, escreveu Dodge.
Médicos constataram que Geddel, ao ser avaliado no fim do ano passado, estava “muito deprimido e sem perspectivas de futuro”. Diante desse diagnóstico, a direção da Papuda retirou-o do isolamento absoluto e o colocou na cela com mais um detento. Há duas semanas, em sua aparição pública mais recente, Geddel, mais magro e abatido, prestou depoimento sobre um processo de improbidade administrativa. Ao todo, seus advogados já impetraram cinco pedidos de liberdade na Justiça, argumentando que a prisão do ex-ministro é abusiva e ilegal. Enquanto aguarda uma decisão da Justiça, Geddel passa o tempo lendo e concluiu um curso profissionalizante de “vendedor”. Parece ter melhorado. Foi aprovado em disciplinas como “relacionamento interpessoal”, “autocontrole”, “marketing” e “mala direta”. Sua nota foi acima da média: 8.
Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628
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