Presidentes da República costumam ter um conselheiro ao qual recorrem na hora de indicar ministros a tribunais superiores, uma posição de extremo poder em Brasília. Em anos recentes, o mais conhecido e influente deles foi o advogado Márcio Thomaz Bastos, criminalista com sólida carreira jurídica, responsável por chancelar escolhas do governo Lula ao Supremo Tribunal Federal (STF). Na gestão atual, essa função é exercida pelo filho mais velho de Jair Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro, que, apesar de formado em direito, fez da atividade parlamentar a sua profissão. Uma das poucas pessoas em que o ex-capitão realmente confia, o Zero Um recebeu do pai a missão de garimpar opções “terrivelmente evangélicas” para a vaga que será aberta no STF, em julho, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello (veja a entrevista na pág. 11). De início, o pastor presbiteriano André Mendonça — comandante da Advocacia-Geral da União (AGU) e favorito para o posto — enfrentou a resistência de Flávio, que compartilhava da preocupação de parlamentares governistas com a possibilidade de Mendonça, uma vez empossado, não defender os interesses dos bolsonaristas na mais alta instância do Poder Judiciário.
“O André Mendonça pode ser o (Edson) Fachin do Bolsonaro”, era o mantra que alguns políticos aliados, referindo-se a supostas traições de Fachin aos petistas, repetiam nos ouvidos de Flávio, certos de que o recado seria passado adiante. Ciente da situação, Bolsonaro orientou Mendonça a se entender com o Senado, a quem cabe aprovar os nomes para o STF, e especialmente com Flávio, seu líder de fato na Casa. Assim foi feito, e a indicação do chefe da AGU parece, a cada dia, mais pavimentada. “As diferenças entre Flávio e André Mendonça foram superadas”, diz um dos mais importantes articuladores do governo Bolsonaro, sem dar detalhes das bases do acordo firmado entre as partes. Na indicação de Kassio Nunes Marques, Flávio teve papel decisivo. Ele foi apresentado ao postulante pelo senador Ciro Nogueira, mandachuva do Progressistas e prócer do Centrão, que trabalhava para emplacar o então desembargador no cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Zero Um gostou de Nunes Marques e, então, colocou-o em contato direto com Bolsonaro, que decidiu promovê-lo não ao STJ, mas ao STF. Para os governistas, a escolha foi certeira, já que, segundo eles, Nunes Marques tem votado de acordo com os interesses do presidente nos casos mais relevantes.
A preocupação dos Bolsonaro com o Supremo é natural. Estão sob responsabilidade do tribunal inquéritos sobre fake news e atos antidemocráticos, que têm como alvos potenciais o vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, e o deputado Eduardo Bolsonaro, o Zero Três. A Corte também está prestes a decidir uma questão crucial para o destino da apuração do esquema da rachadinha, que já rendeu uma denúncia contra Flávio pela prática de crimes como lavagem de dinheiro, peculato e organização criminosa. O ministro Gilmar Mendes pretende apresentar ainda neste mês seu voto no caso que decidirá qual instância deve julgar Flávio, o notório Fabrício Queiroz e outra dezena de personagens desse enredo. A defesa do senador alega que ele tem direito a foro privilegiado e, portanto, a rachadinha não pode ser tocada pela primeira instância. Autor da denúncia, o Ministério Público do Rio de Janeiro quer que a investigação volte para as mãos do juiz Flávio Itabaiana, que deu as primeiras decisões sobre a apuração. Hoje, a tendência é que o Supremo decida favoravelmente ao Zero Um, determinando que a rachadinha continue sob responsabilidade da segunda instância.
A acusação contra Flávio era — e ainda é — a principal amarra que o impede de fazer em público aquilo que ele faz com desenvoltura longe dos holofotes: a articulação política da administração de seu pai, o que contempla desde a relação do Executivo com os outros poderes até a negociação de demandas de varejo da classe política. Um ministro do Supremo, que pediu para não ser identificado, definiu o senador como “primeiro-ministro” do governo. Não parece um exagero. Entre as várias missões delegadas a Flávio, está a escolha do partido ao qual Jair Bolsonaro se filiará para disputar a reeleição no ano que vem. O senador achava que o ideal era o presidente aderir a uma legenda de grande porte, capaz de lhe garantir tempo de televisão e recursos públicos comparáveis aos que o PT terá na próxima campanha presidencial. Sua preferência era pelo retorno ao PSL, mas a cúpula do partido resistiu a receber de volta Bolsonaro, que deixou a sigla atirando. Na semana passada, Flávio assinou a sua ficha de filiação ao Patriota, uma sigla que conta com seis deputados. Ele ainda levou o presidente do partido, Adilson Barroso, para um encontro com o pai, no qual Bolsonaro foi convidado a se filiar à legenda. O presidente ainda não respondeu.
Caso a adesão do ex-capitão ao Patriota seja confirmada, o plano de Flávio de garantir ao pai estrutura de campanha equiparável à do PT não será necessariamente frustrado. Hoje, o senador estima que Bolsonaro terá mais recursos e tempo de propaganda que o candidato petista, desde que mantenha a aliança com o chamado Centrão. A expectativa dos bolsonaristas é que a chapa à reeleição reúna, além do Patriota, pelo menos Progressistas, PR e PL, todos devidamente contemplados com cargos e verbas federais. Selada no ano passado, quando o presidente estava pressionado pelo Supremo e pela prisão de Fabrício Queiroz num imóvel pertencente a Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro, a aliança com o Centrão teve como intermediário o Zero Um. O presidente pediu ao primogênito que avisasse ao senador Ciro Nogueira que ele queria o Progressistas em seu governo. Ciro respondeu ao senador que toparia desde que também levasse PR e PL para a base aliada e que o acerto da parceria fosse feito diretamente com Bolsonaro. A negociação foi concluída com sucesso. Desde então consolidou-se na classe política, especialmente entre os senadores, a percepção de que o melhor caminho para se chegar ao gabinete presidencial não é por meio dos articuladores políticos formalmente constituídos, mas via Flávio.
Considerado o filho mais talhado para a política e o menos propenso a embates desnecessários, a ponto de fazer questão de manter uma distância regulamentar do irmão Carlos, com quem tem uma relação protocolar, Flávio costuma conversar pessoalmente com o pai nos períodos da manhã, quando o humor do presidente, segundo ele, é melhor do que nos finais de tarde. Nessas ocasiões, trocam impressões sobre o cenário político e tratam de assuntos diversos, de nomeações para cargos a ações oficiais, passando por estratégias eleitorais. Flávio defende a tese de que uma eventual disputa com Lula será acirrada e pode ameaçar a reeleição de Bolsonaro. Por isso a sua preocupação com a formação de uma coligação eleitoral ampla. Numa conversa recente, ele disse que o presidente precisará de todos os recursos possíveis para se defender da pecha de ser o principal responsável pelas mortes decorrentes da pandemia de Covid-19 e para atacar Lula, sobretudo com as denúncias de corrupção contra o ex-presidente que ainda estão pendentes de julgamento. Quando confrontado com o fato de que ele, Flávio, é acusado na rachadinha, o senador costuma dizer que não dá para comparar uma coisa com a outra. O tempo dirá se tem ou não razão.
Por mais que decisões judiciais tenham atingido pilares da apuração da rachadinha, o caso continua a assombrar a primeira-família da República. O senador jura inocência e diz que não se beneficiou da movimentação financeira milionária de Fabrício Queiroz, apontado como operador do esquema no antigo gabinete do Zero Um na Assembleia Legislativa do Rio. Afeito a teorias da conspiração como o pai, Flávio alega que há uma orquestração entre promotores do Rio e o juiz Flávio Itabaiana a fim de atingir a imagem de Bolsonaro. A família seria vítima de uma armação. Essa tese ainda não foi capaz de sensibilizar nem os promotores nem a opinião pública. Orientado por seu advogado, Flávio evita tratar do assunto. Evita também dar entrevistas. Procurado, não quis se manifestar. O Zero Um acredita que, quanto mais distante ficar dos holofotes, maiores serão as suas chances de vencer a batalha na Justiça. Como o negacionismo é multidisciplinar, a estratégia também envolve negar toda e qualquer influência no governo do pai. Certa vez, Flávio chegou a ser orientado a desmentir que era o responsável pela indicação de Marcelo Magalhães para a Secretaria Especial de Esporte. Foi demais até para o senador, que lembrou que Magalhães havia sido seu padrinho de casamento.
As digitais de Flávio aparecem também em poderosos cargos de primeiro escalão. Foi ele quem propôs a nomeação de Marcelo Queiroga para o Ministério da Saúde. Amigo do sogro do senador, Queiroga já tinha sido sugerido por Flávio numa das trocas anteriores na pasta, mas acabou preterido. Na segunda tentativa, conquistou a vaga, depois de receber do Zero Um o seguinte conselho para a entrevista derradeira com o presidente: “Não fale só o que ele quer ouvir”. Queiroga, como se sabe, assumiu o posto defendendo a vacinação, o uso de máscaras e o distanciamento social. Se tenta negar em público a influência que tem no governo do pai, nos bastidores Flávio lida muito bem com as vantagens de quem tem acesso privilegiado ao centro do poder.
Novato em Brasília, onde exerce o seu primeiro mandato federal, o senador é assediado por toda sorte de candidatos a novos amigos. No mês passado, uma reportagem de VEJA revelou que ele se aproximou de Willer Tomaz, advogado delatado no acordo de colaboração de Joesley e Wesley Batista e que se gaba de ter mais de 200 parlamentares como clientes. Em razão de sua capacidade de agregar pessoas e interesses, Tomaz é um tipo muito bem cotado em Brasília. Dono de uma propriedade rural nas cercanias da capital, ele costuma reunir gente importante para conversas e festas diversas. O Zero Um já esteve no local e fez questão de tirar uma foto lá. O ramo da advocacia, por sinal, parece finalmente entusiasmar o senador. Em abril, ele recebeu a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na capital do país e, assim, passou a ter autorização para advogar na capital do país. Mas seu jogo agora é outro. Com a situação jurídica menos palpitante e com mais equilíbrio que seus irmãos e o próprio pai, Flávio tornou-se a grande eminência (nem tão) parda deste governo.
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741