Antes de ter o nome aprovado para assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, na quarta-feira 1º, o advogado André Mendonça foi interrogado pelos senadores por oito horas. Perguntaram-lhe sobre liberdade de imprensa, Lava-Jato, prisão em segunda instância, democracia, casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto e outros temas pertinentes. É natural que seja assim. Nas democracias mais avançadas do mundo, a nomeação de um juiz para uma Corte Constitucional é alvo de um rigoroso escrutínio que, muitas vezes, não poupa nem a intimidade do pretendente. Nos Estados Unidos, por exemplo, um candidato ao cargo já foi obrigado a declinar da indicação depois de revelado que havia usado maconha na juventude. No Brasil, não existe essa tradição. O presidente da República escolhe um nome e o envia ao Congresso. Exige-se do candidato, além da idade mínima de 35 anos, notório conhecimento jurídico e conduta ilibada. Cabe ao Senado avaliar se esses pré-requisitos foram atendidos (o que quase sempre é feito de forma protocolar). Dos 81 senadores, 47 disseram que Mendonça estava habilitado para a função, encerrando quatro meses de polêmicas prévias.
Ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União no governo Bolsonaro, Mendonça foi indicado em julho passado. Apesar do sólido currículo, o presidente sempre destacou como a principal qualidade de seu escolhido o fato de ele ser “terrivelmente evangélico”. Por isso, logo de início, a indicação de Mendonça não foi bem recebida por alguns grupos do Congresso, principalmente entre aqueles que se apresentam como defensores das causas das minorias. Aos poucos, no entanto, foi ficando claro que a religião não era o fator de maior resistência ao nome.
De longe, a maior dificuldade do candidato foi demonstrar que não tem uma fé cega no legado da Operação Lava-Jato. Durante a sabatina, Mendonça caprichou em desfazer essa imagem. Disse que as delações premiadas, tão valorizadas nos tempos áureos da força-tarefa de Curitiba, não podiam ser elementos de provas. “A política não pode ser criminalizada”, completou. Acabou sendo bem-sucedido no objetivo do discurso. O futuro ministro já foi um discreto admirador do ex-juiz Sergio Moro e dos resultados da operação. Esse fascínio gerou desconfiança e certa preocupação em muitos políticos, alguns deles da base de apoio do próprio governo, que, nos bastidores, trabalharam firme para sabotar a candidatura.
Não por acaso, a análise da indicação ficou mais de 140 dias dormitando na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A estratégia dos adversários era convencer o presidente da República a escolher outro nome, diante da suposta possibilidade de a indicação ser rejeitada. Bolsonaro chegou a considerar essa hipótese, mas decidiu manter sua decisão. Até a sabatina, a campanha de Mendonça junto aos senadores havia sido solitária. Nos últimos dias, diante da possibilidade de derrota da indicação, finalmente o presidente foi a campo, ligando para pedir votos aos senadores.
Mudar o perfil do STF é uma das obsessões do capitão, que se julga constantemente prejudicado por decisões tomadas pelo Supremo. Antes de Mendonça, ele já havia emplacado Nunes Marques, que vem atuando alinhado aos interesses do governo. É uma incógnita se Mendonça terá a mesma postura. Na sabatina, ele gastou boa parte do tempo para também desfazer a impressão de que sua orientação religiosa poderia influenciar decisões futuras. Independentemente do fato se foi ou não um discurso feito apenas para vencer resistências, a chegada de um nome “terrivelmente evangélico” é insuficiente para alterar o perfil da Corte, que vem se mostrando firme na luta contra o obscurantismo civilizatório e as tentativas de retrocesso democrático. A maioria de magistrados católicos não impediu, por exemplo, que o Supremo autorizasse o aborto de fetos anencéfalos, reconhecesse a união civil entre homossexuais e enquadrasse a homofobia como crime, apesar da pressão de grupos religiosos. “O Supremo não precisa ser um espelho perfeito da população, mas não é bom que esteja em total descompasso com ela. É legítimo que um presidente inclua determinados valores ou grupos religiosos para preencher certas lacunas”, diz o professor do Insper Diego Werneck.
Filho de uma dona de casa católica e de um bancário evangélico, Mendonça terá pela frente 26 anos de atuação no STF, onde ainda será julgada uma série de questões espinhosas da chamada “pauta de costumes”, como a descriminalização da maconha. “A chegada de Mendonça poderá gerar mudanças no rumo de algumas questões polêmicas em que há uma clara divisão da Corte, mas essas mudanças não deverão ser radicais”, avalia o professor de Direito Constitucional da FGV Roberto Dias. Dessa forma, caso seja confirmada essa expectativa mais otimista, a atuação de um ministro “terrivelmente moderado” só irá enriquecer ainda mais os debates no STF.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767