Os bastidores da troca de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde
Como o agravamento da pandemia e a pressão para Bolsonaro mudar de tom na crise culminaram na mudança
Eduardo Pazuello passou da condição de homem de confiança do presidente da República para a de ex-ministro da Saúde em 48 horas. Ao longo da semana passada, integrantes do núcleo duro do governo debatiam mudanças na condução do ministério, mas sem vislumbrar a iminente queda do general da pasta. Falava-se pela enésima vez em modificações na estratégia de comunicação. Mais precisamente, até a quinta-feira 11, Bolsonaro não dava sinais de que pretendia mexer no time, e Marcelo Queiroga era apenas o presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia que tinha boas relações com o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Paralelamente, entretanto, o Congresso emitia sinais cada vez mais concretos de descontentamento com as políticas de combate à pandemia. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), já havia deixado claro a Bolsonaro a pressão que vinha sofrendo para instalar a CPI da Covid, que devassaria a gestão Pazuello e o que mais houvesse pela frente. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, foi mais objetivo: avisou que, se a CPI saísse do papel, ninguém poderia garantir que as investigações também não atingiriam o presidente da República. O ministro já estava convocado para prestar esclarecimentos sobre a crise do oxigênio em Manaus na quinta-feira 18. E a CPI já tinha as assinaturas suficientes para ser aberta. “Se o Pazuello continuasse, com certeza ela seria instalada. Com a saída dele, esfria a discussão”, diz o senador Otto Alencar (PSD-BA), que integra uma comissão da Casa sobre a Covid-19.
Outro ponto crucial para a queda de Pazuello foi a volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo eleitoral. Num processo capitaneado pelo ministro Fábio Faria (Comunicações), aliados moldaram um discurso que coubesse no perfil e na lógica tortuosa do chefe. Propuseram que Bolsonaro mantivesse as críticas aos decretos de restrição de circulação impostos pelos governadores Brasil afora, mas apelaram para a urgente necessidade de se defender a vacinação e o uso da máscara. Argumentaram que as duas medidas vão ao encontro da pregação do presidente, já que vacina e máscara inegavelmente podem contribuir para que os lockdowns e toques de recolher sejam afrouxados e a população volte ao trabalho. Lula discursou na quarta-feira 10 e desancou as posturas e decisões de Bolsonaro durante a pandemia. O capitão sentiu o golpe e, a partir de então, passou a usar máscara em eventos públicos e deixou claro que acataria a estratégia de Fábio Faria. Mas não só isso. Convenceu-se da necessidade de dar uma cara nova ao quartel-general de combate à Covid-19. Azar de Pazuello.
E tudo andou rápido demais. Na sexta-feira 12, Bolsonaro já tratou do tema abertamente com aliados, como o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Ouviu apelos tanto em favor da permanência quanto da demissão do ministro. Menos de 24 horas depois, a decisão estava tomada. Na noite de sábado 13, numa reunião com a presença dos ministros militares Walter Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Fernando Azevedo (Defesa), o presidente e Pazuello conversaram. No dia seguinte, com a notícia na rua, já se tinha início a busca pelo substituto.
Primeiro, Bolsonaro sondou o contra-almirante Antonio Barra Torres, presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Recuou rapidamente para evitar as críticas que receberia por manter o ministério nas mãos de um militar. Além disso, resolveria um problema e criaria outro, ao deixar o comando da agência responsável pela liberação de vacinas sem alguém de sua confiança. Surgiam então três outros nomes: Ludhmila Hajjar, cardiologista, professora da USP e médica de uma penca de personagens da República; Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia; e, correndo por fora, um integrante do Centrão, o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), médico e ex-secretário de Saúde no Rio de Janeiro.
Ludhmila despontou como favorita. Contou com o apoio público de Arthur Lira e a atuação nos bastidores do ministro Dias Toffoli, do STF. De imediato, porém, surgiram informações sobre a ligação dela com políticos de esquerda e supostas declarações contra pontos defendidos por Bolsonaro, como a prescrição da cloroquina. A tropa virtual bolsonarista partiu para o ataque. A médica relatou ter sofrido ameaças e disse que não aceitaria assumir o posto. Bolsonaro a descartou, assim como fez com Dr. Luizinho. Na segunda 15, bateu o martelo pelo paraibano Queiroga, o quarto ministro a tocar a pasta desde o início da pandemia. A decisão gerou a primeira crise com Arthur Lira, que ficou extremamente irritado com a escolha de um nome que não contava com seu aval e sobre quem não terá nenhuma ascendência.
Embora nunca tenha ocupado cargos públicos ou disputado eleições, Marcelo Queiroga é um político clássico nos gestos. É amigo do ex-senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) e do deputado Hugo Motta (Republicanos-PB). Seu padrinho, porém, é outro. Ele chega ao governo graças à proximidade que nutriu com Flávio Bolsonaro, que conheceu por intermédio de Hélio Figueira, sogro do Zero Um e conceituado cardiologista da Clínica São Vicente, no Rio. Queiroga foi visto como um verdadeiro achado de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, é eleitor declarado do capitão, tratado pelo cardiologista como “mito” nas redes sociais, e tem reconhecimento da comunidade médica com seus mais de trinta anos de profissão. “Ele alia competência técnica com capacidade de articulação e diálogo que agrada a gregos e troianos. É do que precisamos no momento: alguém agregador”, diz o secretário de Saúde da Bahia, Fábio Vilas-Boas, que o conhece há alguns anos. “Ele tem de se tornar o Posto Ipiranga da Saúde”, afirma, em referência ao apelido que Paulo Guedes ganhou na Economia.
Amigos próximos confidenciaram que uma das principais qualidades de Queiroga é conseguir “dar nó em pingo de éter”, ou seja, construir um discurso aceito pelos bolsonaristas e pela comunidade médica. No encontro que teve com Bolsonaro, o presidente lhe fez um pedido direto para que não defendesse o lockdown, o que ele atendeu prontamente. “Não pode ser política de governo”, disse numa entrevista, para logo em seguida acrescentar que só as “políticas sanitárias vão permitir uma retomada da economia mais rápida”. Em seu primeiro pronunciamento, na terça-feira, defendeu a ciência, o SUS, a vacinação e o uso de máscara, mas não citou o isolamento social. A governadores e secretários prometeu um encontro assim que tomar posse e a implementação de uma coordenação central com representantes das sociedades médicas e de estados e municípios. Sua primeira ligação foi com o governador do Piauí e porta-voz dos chefes de Executivo estaduais, Wellington Dias (PT). Além da reconstrução de pontes e de uma articulação federal que funcione, a prioridade óbvia do novo ministro será acelerar — e fazer cumprir — o cronograma de vacinação, um dos pontos que levaram Pazuello ao descrédito. Outro pedido é o de uma campanha publicitária nacional sobre a importância das vacinas, o uso de máscaras e o distanciamento. “Só chegamos a esse ponto devido à falta de coordenação central desde o início, um tratamento com linguagem única à população”, diz o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que se vê às voltas com o agravamento da pandemia no seu estado, um dos mais críticos, ao lado de São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná.
A reconstrução do ministério vai passar, no entanto, por remover os entulhos deixados por Pazuello. Um dos seus principais erros foi na escolha dos subordinados — em vez de montar uma equipe conhecedora da área da saúde, preferiu levar com ele uma tropa de mais de vinte militares e civis com menos experiência ainda na área. Exemplo maior disso é Airton Soligo, que ficou famoso com o apelido Cascavel, que ganhou quando era gerente de uma empresa de ônibus homônima no oeste do Paraná. Ele também já foi proprietário de uma fazenda, empresas de polpa de frutas e alimentos, algumas franquias em shoppings e dois motéis. Na política, foi prefeito de Mucajaí (RR) aos 24 anos, deputado estadual, presidente da Assembleia de Roraima, vice-governador e deputado federal. Em 2018, tentou (sem sucesso) se eleger deputado federal. Teve mais sorte ajudando o então apenas general Pazuello na Operação Acolhida, que levava imigrantes venezuelanos de Pacaraima (RR) para outros estados — com esse currículo, acabou virando assessor especial do ministro durante a maior crise sanitária do país. Na opinião dos governadores e secretários, Cascavel era o “ministro de fato”, a pessoa que “desenrolava” as pendências e demandas logísticas, como entrega de respiradores, lotes de vacina e equipamentos para UTI. “Quando a gente tinha algum problema, o Pazuello mandava falar com ele”, conta um secretário estadual. Como se viu no recente episódio do despacho de vacinas para o Amazonas que foram parar no Amapá, Cascavel e companhia não ajudaram muito o chefe a honrar a fama de especialista em logística atribuída a Pazuello.
Na estratégia do Planalto para não deixar o general sair queimado (como se isso fosse capaz de apagar uma das gestões mais desastrosas da história), foi combinado que parte dos integrantes da pasta seria mantida num primeiro momento. Até quinta passada, na bolsa de apostas dos governadores, a saída de Cascavel era dada como certa, assim como as exonerações do secretário-executivo, coronel Elcio Franco, e da secretária de Gestão e Trabalho, a pediatra Mayra Pinheiro. Segundo auxiliares dos governadores, partiu de Elcio, que costumava dar coletivas com broche da “faca na caveira”, a ideia de comprar vacinas a conta-gotas. Mayra, por sua vez, seria a responsável pelo gasto de energia desnecessário com o chamado tratamento precoce — o que lhe rendeu o apelido de “Capitã Cloroquina”. Num jantar na semana passada no restaurante Nido, no Rio de Janeiro, Queiroga dizia a três comensais que vai colocar um nome de perfil técnico como secretário-executivo e que teve carta branca de Bolsonaro para escolher a equipe. Bom sinal.
Pazuello pode ter saído com a moral pública em baixa, mas na visão oficial sempre foi o homem que cumpriu a missão dada por Bolsonaro. O plano inicial era que atuasse nas sombras como secretário-executivo, montando a equipe com gente de confiança e reportando tudo ao presidente, o que ele fez. Com a saída de Nelson Teich, após menos de um mês no cargo, assumiu a pasta como interino em maio de 2020 e foi ficando, até ser efetivado em setembro e se tornar o ministro mais longevo da pandemia. “O trabalho estava muito bom, a parte de gestão foi muito bem-feita”, disse Bolsonaro. Não estava, é claro, como mostram os números. Queiroga é mais uma chance para Bolsonaro, enfim, acertar. O país já paga caro demais pela dose elevada de irresponsabilidade na gestão da saúde durante a pandemia.
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Com reportagem de Adriana Dias Lopes
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730