Em 2018, Jair Bolsonaro se apresentou ao eleitor como o candidato antissistema, que prometia combater a velha política e derrotar o Centrão, considerado por ele a essência do fisiologismo. Depois de tomar posse na Presidência da República, o ex-capitão deixou essa fantasia de lado e passou a abrir as portas do governo para o grupo de partidos que, durante a campanha, ele dizia repudiar. Primeiro, o Centrão ganhou ministérios, cargos de segundo escalão e fatias do Orçamento da União para se tornar a base de apoio do mandatário no Congresso. Vencida a fase do noivado, chegou a hora do casamento. Na semana passada, Bolsonaro decidiu se filiar ao PL, controlado pelo notório Valdemar Costa Neto, preso no mensalão e investigado no petrolão. A filiação é parte da estratégia do presidente de disputar um novo mandato com o apoio dos principais expoentes do Centrão, o que inclui também o PP do ministro Ciro Nogueira (Casa Civil) e o Republicanos do ministro João Roma (Cidadania). Ou seja: em 2022, Bolsonaro, um ex-deputado de baixo clero com quase trinta anos de mandato parlamentar e quase uma dezena de legendas no currículo, volta às origens como um legítimo representante do “sistema”.
Desde que deixou o PSL, após uma briga interna pelo controle da máquina e do caixa partidários, Bolsonaro buscava uma sigla para se filiar. Seu plano inicial era fundar a Aliança pelo Brasil, que representaria a direita mais radical no país, mas o presidente não conseguiu reunir o número de assinaturas de apoio exigido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro, então, passou a considerar alternativas e chegou a encaminhar um acerto com o nanico Patriota, mas resistências dentro da sigla impediram a filiação. Quando o Centrão assumiu o protagonismo em sua gestão (o que, reconheça-se, deu alguma estabilidade a este governo), ele passou a tratar de sua adesão a um dos integrantes do grupo. O presidente foi convencido por aliados, como seu filho Flávio Bolsonaro, de que, para ter chances de vencer a próxima corrida presidencial, precisava de uma aliança partidária forte, formada por legendas com boa quantidade de deputados e, em razão disso, com direito a dois ativos: tempo de propaganda na TV e fundo eleitoral. Restava definir qual camisa vestir, e o presidente quase se atrapalhou na hora da escolha. Num dia, Bolsonaro recebeu Valdemar Costa Neto e acertou sua entrada no PL. No dia seguinte, seu filho Flávio disse que o PP ainda estava no páreo.
Coube a Valdemar Costa Neto dar o passo necessário para que o impasse fosse resolvido. Ele fez chegar ao Palácio do Planalto o recado de que, se o PL fosse preterido, romperia com o governo e apoiaria em 2022 o ex-presidente Lula, de quem foi aliado. Valdemar também lembrou do tamanho de cada legenda do Centrão no governo. O PP tem a Casa Civil e a presidência da Câmara, enquanto o PL comanda a Secretaria de Governo, que, apesar do status de ministério, desempenha um papel de coadjuvante na administração. A balança, portanto, estava desequilibrada. Tais argumentos ajudaram Bolsonaro a se decidir. No próximo dia 22, ele se filiará ao PL, que tem 43 deputados, quatro senadores, 345 prefeitos e 3 438 vereadores. Em 2020, o partido recebeu 63 milhões de reais do fundo partidário e mais de 117 milhões de reais do fundo eleitoral. Vitorioso na corrida pela filiação, Valdemar Costa Neto divulgou um áudio, por meio de sua assessoria, em que diz que todos do Centrão devem crescer juntos, de mãos dadas com o presidente. Foi difundida até a versão de que o PP pode indicar o vice na chapa, o que, por enquanto, não passa de um balão de ensaio. O fato é que, até a eleição, novas concessões devem ser feitas ao Centrão em nome do projeto de reeleição. Entre elas, a manutenção das polêmicas emendas de relator, que têm como principais clientes justamente os congressistas do grupo.
PP e PL disputaram a filiação de Bolsonaro porque acreditam que, ao marcharem juntos do presidente, podem ampliar as suas bancadas na Câmara, que são a fonte de sua influência e de seu poder de barganha. Apesar de as direções das duas siglas estarem fechadas com o projeto de reeleição, há dissidências em suas bases, principalmente de políticos do Nordeste, que querem se aliar ao ex-presidente Lula. Além de eventuais traições pelos estados, Bolsonaro terá de lidar com eventual desgaste de imagem provocado pelo fato de se entregar definitivamente aos braços do Centrão. Até aliados do presidente reconhecem que ele pode perder votos para o ex-juiz Sergio Moro, que se lançou no páreo, entre segmentos do eleitorado que consideram prioritário o combate à corrupção. Ao se filiar ao Podemos, Moro declarou, antecipando uma de suas estratégias de campanha: “Chega de mensalão, chega de petrolão, chega de rachadinha, chega de orçamento secreto” (leia a reportagem na pág. 26). Na campanha, os adversários do presidente poderão até lembrar antigas referências de Bolsonaro e de seus aliados sobre o Centrão.
“Procurem parlamentares do dito Centrão”, disse Bolsonaro em novembro de 2018, dias depois de conquistar a Presidência. “Eles têm consciência de que o Brasil, continuando dessa forma de fazer política, no toma lá dá cá, continuará com um estado ineficiente e corrupto. E é isso que nós não queremos”, acrescentou na ocasião. Meses antes, o general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional, comparou o Centrão a um ajuntamento de ladrões. Recolhido ultimamente, Heleno diz agora que mudou de opinião. Nada como o respeito à hierarquia. Já os caciques dos partidos que apoiam o presidente, conhecidos pelo pragmatismo, não demonstram ressentimento algum pelos ataques de que foram alvo. Na próxima eleição, o Centrão promete dizer que Bolsonaro comprou vacinas contra a Covid-19, criou o Auxílio Brasil, fez o possível para impedir a debacle econômica e ainda governou sem casos de corrupção. O discurso já está treinado. Só não se sabe se convencerá o eleitor. “Bolsonaro vai fazer uma campanha com tempo de televisão. Vai ter oportunidade de prestar contas. Já vai chegar no segundo turno com a opinião pública formada a favor dos pontos positivos do governo”, diz o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR). O PL de Valdemar, e tudo que ele simboliza, estará na proa da campanha sem que isso, ao que parece, represente qualquer tipo de constrangimento.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764