A recente declaração de Ciro Gomes de que “não há caminho” para apoio a Lula no segundo turno é reflexo de uma série de mágoas da última eleição e também de uma vitriólica divergência num palanque estadual. Em 2006, Ciro ajudou a construir uma frente de centro-esquerda com nove partidos, entre eles o PT do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e conseguiu que seu irmão, Cid Gomes, derrotasse no primeiro turno Lúcio Alcântara, candidato do PSDB, sigla que governava o Ceará desde 1989. Começava ali uma hegemonia que duraria dezesseis anos, renderia quatro mandatos no governo e chegaria a 2022 como a aliança político-eleitoral mais longeva no comando de uma unidade da federação. Tudo isso, no entanto, ruiu de forma barulhenta nas últimas semanas, às vésperas do início do processo eleitoral, com tudo o que pode acontecer quando um casamento termina de forma litigiosa: acusações, ciúme, rancores variados, disputa por amigos em comum e promessas de iniciar uma vida nova mais feliz sem o antigo parceiro.
O responsável pelo início do bem-sucedido matrimônio político é hoje tido como o pivô da separação. Ciro Gomes cuidava das questões nacionais do partido e deixava seu irmão resolver as alianças locais, mas em 2022 ele assumiu o protagonismo no Ceará (Cid nem compareceu à convenção estadual do PDT) e bancou o ex-prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio como o candidato do grupo. Uma aposta com alto risco de confronto porque o PT defendia o nome de Izolda Cela, também do PDT, que era vice-governadora e assumiu o governo após a saída de Camilo Santana (PT) para disputar o Senado. Com o gesto, Ciro rachou a base aliada, viu o petismo abandonar a frente e lançar o deputado estadual Elmano de Freitas ao governo, com as bênçãos de Camilo e de Lula. Pior: Izolda saiu atirando, anunciou a desfiliação e disse que vai caminhar com o nome do PT.
A confusão ocorre justamente no momento em que o pedetista, atual terceiro colocado na corrida ao Palácio do Planalto, precisa concentrar forças para tentar sair da estagnação nas pesquisas presidenciais e se aproximar do distante pelotão da frente formado por Lula e Bolsonaro. Ao apostar em Cláudio e se desvincular do PT no estado, Ciro tentou marcar sua posição anti-Lula no cenário nacional (ele também é anti-Bolsonaro) e, no plano doméstico, frear a ascensão de Camilo, favoritíssimo ao Senado (tem mais de 60% das intenções de voto). Até aqui, a jogada parece ser um tremendo tiro no pé. Na prática, o efeito foi de ajudar o ex-aliado a se firmar de vez como a liderança política mais popular do Ceará. Camilo conseguiu o apoio de Izolda, que governará o estado durante a campanha eleitoral e tem quase 60% de aprovação. De quebra, emplacou como candidato Elmano de Freitas, que era o líder de seu governo na Assembleia Legislativa.
Além disso, em poucas semanas, Camilo atraiu para a aliança o MDB do ex-presidente do Senado Eunício Oliveira (que vai sair candidato a deputado federal) e pode trazer também o PSDB de Tasso Jereissati, com quem Lula já conversa. A ideia é oferecer aos dois aliados a vaga de vice ou a suplência ao Senado — uma posição interessante porque muitos apostam que Camilo será ministro em um eventual governo Lula. O ex-governador costurou também os apoios do PCdoB e do PV e ainda tenta o do PSB, que fez aliança nacional com o petismo.
A proximidade de Izolda com Camilo Santana e o PT sempre foi vista como um problema por Ciro e seu grupo. A percepção da cúpula do PDT era que o palanque estadual tendo como protagonistas Izolda ao governo e Camilo ao Senado seria totalmente lulista — ou seja, vencer com ela seria “ganhar, mas não levar”. Mesmo perdendo o parceiro de aliança justamente no momento em que o PT é favorito nacionalmente, o PDT tenta enxergar algo positivo no fim do casamento. Argumenta, por exemplo, que a nova situação permite atrair aliados que possam ajudar tanto no plano local quanto nacional, como o PSD, a quem ofereceu o posto de vice no estado na esperança de obter apoio do partido de Gilberto Kassab na corrida presidencial — o que é difícil de acontecer.
Quem vê de camarote o divórcio dentre PDT e PT é o deputado federal Wagner Sousa Gomes, conhecido como Capitão Wagner, candidato ao governo cearense pelo União Brasil e apoiado pelo PL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Líder nas pesquisas, com mais de 40% das intenções de voto em qualquer cenário, segundo o Paraná Pesquisas de julho, Wagner, um policial militar da reserva, foi alçado à política por protagonizar um motim de PMs em 2012. Ele vê no racha entre PDT e PT a sua melhor chance para vencer uma eleição majoritária após ter sofrido duas derrotas para pedetistas nas eleições de Fortaleza, em 2016 (para Roberto Cláudio) e 2020 (para José Sarto). “A população vai ver com maus olhos um grupo político que se digladia”, aposta Sargento Reginauro (União), vereador de Fortaleza, candidato a deputado estadual e braço direito de Wagner.
Nesta eleição, o candidato é favorito para chegar ao segundo turno, enquanto Roberto Cláudio e Elmano de Freitas disputam a segunda vaga. Independentemente de quem passar para o round 2, petistas e pedetistas terão de lamber as feridas para uma reconciliação de emergência. Caso contrário, a direita controlará um dos principais colégios eleitorais do Nordeste, região que a esquerda domina há anos — ameaça que também ronda estados como Pernambuco, Bahia e Piauí. Resta saber se o divórcio não deixará mágoas incuráveis. A julgar pelo tom dos últimos dias, sim. “Prevaleceu a arrogância, o capricho e a expressão de mando que subjugou os interesses dos cearenses à obsessão de poder de um só”, diz o PT do Ceará em nota sobre o gesto de Ciro. Este, por sua vez, acusa Lula de “sabotagem”. “O que está acontecendo é o seguinte: o Lula resolveu desconsiderar toda e qualquer ética e escrúpulo para destruir todos os partidos. Ele chamou o Rodrigo Neves, o Weverton Rocha, o Carlos Eduardo e tentou operar no Ceará”, reclamou o pedetista, enfileirando nomes do PDT no Rio de Janeiro, Maranhão e Rio Grande do Norte que o ex-presidente teria tentado atrair.
Por ironia, o duradouro casamento político no estado é um ponto fora da curva na volúvel carreira de Ciro. Nascido no PDS, partido da ditadura, ele ziguezagueou por sete legendas e transitou por grupos políticos diversos, como o tucanato e o petismo, antes de se abrigar no nacionalismo esquerdista do PDT inspirado em Leonel Brizola. Com Lula, o imbróglio cearense representa mais um capítulo do vaivém entre ambos. Ciro apoiou o petista em 1989 contra Fernando Collor. Mais tarde, foi adversário de Lula em 2002 e no ano seguinte virou ministro do petista. Depois, disputou uma vaga no segundo turno de 2018 contra Fernando Haddad (PT) e, derrotado, se recusou a declarar apoio ao petista. Na campanha de 2022, não para de atacar tanto Lula quanto Bolsonaro e iguala ambos com frequência, o que irrita a militância petista.
Em sua última tentativa de chegar à Presidência, há quatro anos, Ciro teve o maior número de votos no Ceará, único estado onde isso aconteceu. Agora, tem menos de 15% no seu reduto e lida mal com a ascensão de uma nova liderança que pode apear seu grupo do poder local. Caso não consiga virar o jogo no placar doméstico e no nacional (o que parece ser o mais provável), será uma derrota dupla e, sem dúvida, o mais difícil revés de sua carreira.
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800