Os desafios de Doria para se tornar o nome da terceira via em 2022
Após prévias, o tucano precisa unificar o seu partido, fechar acordos fora dele e melhorar o seu desempenho eleitoral
Apesar de ser um dos políticos brasileiros mais bem-sucedidos dos últimos anos (não perdeu nenhuma eleição que disputou desde sua estreia nas urnas, em 2016, quando conquistou o direito de comandar a maior metrópole do país), o governador paulista João Doria, do PSDB, está longe de ser uma unanimidade dentro e fora de seu partido. Seus muitos inimigos e analistas apressados são pródigos em prever tropeços em sua trajetória política, e a aposta mais recente envolvia a possibilidade de fracasso nas prévias presidenciais tucanas. Como se sabe, a previsão deu errado, mas a briga foi mais acirrada do que se imaginava. O fato de Doria estar à frente da unidade mais poderosa da federação não o impediu de sofrer derrotas sucessivas em quase todos os seus pleitos e interesses na fase de organização dessa disputa. Além disso, a maioria dos caciques da sigla, incluindo nomes como o deputado federal Aécio Neves (MG), o senador Tasso Jereissati (CE) e o ex-governador Geraldo Alckmin (SP), trabalhou fortemente a favor do concorrente rival, o governador gaúcho Eduardo Leite. No fim da tumultuada disputa, na qual uma pane na ferramenta eletrônica de votação adiou por uma semana a decisão, Doria, mais uma vez, venceu os obstáculos, sagrando-se vitorioso. “Cada vez que dizem que não vai dar, eu aumento minhas horas de trabalho, minha dedicação. Exatamente para demonstrar o contrário”, afirmou ele a VEJA.
João Doria fala a VEJA: “O Brasil tem jeito”
Agora, o governador precisará multiplicar esses esforços diante dos desafios gigantescos que terá pela frente no sonho de chegar à Presidência, mostrando-se a alternativa ao centro mais viável para romper a polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, atuais líderes nas pesquisas. A primeira tarefa espinhosa envolve reconstruir o ninho tucano, que nunca se recuperou de seu período de glórias dos tempos da Presidência de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002. Derrotas sucessivas ajudaram a gerar divisões internas, que se aprofundaram ainda mais ao longo do recente processo das prévias. Até a bandeira de ética se perdeu ao longo do caminho, com figurões da sigla atingidos em cheio por denúncias de corrupção, com destaque nesse quesito para Aécio Neves. Ciente do tamanho da empreitada, Doria expressou a sua preocupação logo no discurso da vitória, em Brasília, no último dia 27. “Nessas prévias não há nenhum derrotado”, disse. “Precisamos da união do PSDB e de todos os partidos que possam construir o centro democrático.”
O processo de pacificação do tucanato passa pela complexa construção de pontes entre ele e algumas das lideranças que apoiaram Eduardo Leite. Não será fácil. O próprio governador gaúcho já recusou a primeira tentativa de aproximação, materializada na forma de um convite para trabalhar na campanha do ex-adversário. Doria tentará novos lances na mesma direção é já escalou seu coordenador de campanha nas prévias, Wilson Pedroso, para ir dentro em breve ao Rio Grande do Sul com a bandeira branca em mãos. Outro ponto delicado é a relação com o presidente do partido, Bruno Araújo, que não escondeu nos bastidores a simpatia por Leite e foi responsável por decisões importantes contrárias aos interesses de Doria durante as prévias. “Bruno é um sapo que vamos ter de engolir”, resume um dos integrantes do grupo paulista. Já para se aproximar de tucanos de outros estados, Doria conta com o auxílio de aliados como Antonio Imbassahy, ex-líder da bancada na Câmara e que hoje é secretário da representação de São Paulo em Brasília, e o vice-governador Rodrigo Garcia, ex-líder do DEM no Congresso, que já tem feito incursões por Brasília para costurar alianças. “Como candidato, escolhido legitimamente nas prévias, Doria reúne as condições para dialogar com bancadas federais e estaduais, considerando os contextos regionais de cada uma delas”, afirma Garcia.
Entre as pedras a ser removidas do caminho, há algumas mais pesadas. É o caso de Minas Gerais, onde a liderança de Aécio pode ser um entrave — Doria já defendeu a expulsão do mineiro, que foi o candidato do partido à Presidência em 2014. Os tucanos do estado concordam que o governador paulista está com a bola para construir a sua viabilidade eleitoral, mas avaliam que isso está atrelado à adoção de uma postura conciliadora e longe de qualquer tentativa de “depuração” direcionada a Aécio. Também acham essencial que Doria evolua nas pesquisas, mude o tom do marketing para fora das fronteiras paulistas e, sobretudo, demonstre capacidade de unificar o centro. “Essa será uma condição fundamental para que ele migre da condição de pré-candidato para a de candidato, porque não terá sentido fracionar o centro político com candidaturas sem capacidade competitiva”, diz o presidente do PSDB mineiro, Paulo Abi-Ackel, aliado de Aécio.
O tempo para Doria parece curto diante do “Everest político” a ser escalado em dez meses. No Palácio dos Bandeirantes, a avaliação é que as costuras internas precisam estar ajustadas antes de março, para que o foco possa se virar para as alianças com outros partidos. O MDB e o União Brasil (fusão de DEM e PSL) estão entre as prioridades — o primeiro, por ser muito capilarizado e seu presidente, Baleia Rossi, próximo de Doria; o segundo pelo fato de o DEM ter sido o partido de Rodrigo Garcia até o início do ano. “Essas são as aproximações naturais”, afirma Imbassahy. No radar estão ainda partidos como o Podemos, que acaba de lançar o ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro à Presidência. Doria e Moro se falam com frequência e uma caminhada em conjunto para 2022 não parece totalmente fora de propósito, desde que se resolva um difícil entrave: quem abrirá mão de ser o líder? Hoje, Moro figura bem melhor que o governador nas pesquisas. Por outro lado, faltam-lhe traquejo político e experiência de gestão, pontos em que Doria leva larga vantagem.
Igualmente delicada e fundamental para o sucesso da candidatura será a construção de palanques nos maiores colégios eleitorais do país. No caso do Rio, espera-se que o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que ocupa cargo de secretário de Projetos e Ações Estratégicas no governo paulista, possa exercer algum papel nesse sentido, mesmo com a expectativa de ele ir para o PSD de Gilberto Kassab — que tem como pré-candidato o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. No caso de Minas, os cálculos são de que Romeu Zema (Novo), governador bem avaliado, possa aprofundar o afastamento já ensaiado do governo Bolsonaro e fique aberto a apoiar outro nome ao Planalto — Doria tem boa relação com ele.
Em São Paulo, a estratégia está nas mãos de Garcia, hoje a figura mais importante na administração do estado e na política de Doria. Nas prévias, Garcia nomeou pessoas de sua confiança que se revelaram fundamentais para a vitória, como o prefeito de Jundiaí, Luiz Fernando Machado, responsável na campanha por resolver o intrincado problema do apagão eletrônico na votação. Incansável na busca por novos aliados, Garcia fechou na última quarta, 1º, o apoio do apresentador José Luiz Datena aos tucanos (o jornalista estava mais próximo do PSD de Kassab). Em troca, na hipótese mais provável, Datena deve sair candidato ao Senado por São Paulo.
O vice-governador assumirá o Palácio dos Bandeirantes em abril e terá as tarefas de se viabilizar como sucessor do chefe e defender a gestão dos ataques adversários. Caberá ainda a Garcia apresentar o legado positivo do governo para diminuir a rejeição a Doria — 58%, segundo pesquisa recente da Quaest. Entre as realizações que serão exploradas estão o esforço pioneiro de Doria para viabilizar a vacinação com a CoronaVac, o fato de o número de alunos em período integral em São Paulo ter passado de 100 000 para mais de 1 milhão e o crescimento do PIB do estado em níveis bem superiores ao do país, mesmo durante a pandemia. “A rejeição dele é a mais fácil de ser revertida, pois tem muitos resultados a apresentar”, afirma o marqueteiro Daniel Braga, que trabalha com o tucano desde 2016.
Do sucesso de Doria pode depender até o futuro do PSDB. O partido, que governou o país por dois mandatos com Fernando Henrique Cardoso, vive um cenário de insucessos desde 2002, com a derrota de José Serra para Lula. A decadência atingiu o fundo do poço em 2018, quando Alckmin teve 4,7% dos votos nacionais e a bancada chegou a 29 deputados (em 1998, eram 99). Tucanos e analistas observam que, nas cinco eleições perdidas, faltaram motes mais bem definidos para pedir votos e uma defesa com mais afinco do legado de FHC. A estabilização da moeda em um país que vivia um quadro de hiperinflação crônica, afinal, teve forte impacto social e lançou as bases para que nos governos de Lula pudesse ter havido distribuição de renda. Foi nas gestões de FHC, além do mais, que se lançaram programas de transferência de recursos que foram os embriões do Bolsa Família, aprovaram-se privatizações, como a do setor de telecomunicações, e as leis de responsabilidade fiscal e dos genéricos. “O PSDB sempre teve dificuldade de assumir aquilo que fez. Em 2002, realizou uma campanha como se estivesse pedindo desculpas à população, não bateu no peito e disse que estabilizou a moeda, que ampliou o acesso à telefonia. A comunicação foi um desastre”, analisa o cientista político Rubens Figueiredo.
Recuperar o terreno perdido em 2022 será difícil, mas a história pode se repetir para o PSDB. Como em 1994, quando a estabilização promovida pelo Plano Real levou FHC ao poder, o tema central em 2018 será a economia. Nesse campo, Doria tem uma vantagem considerável em razão dos bons resultados do estado. Logo após as prévias, ele anunciou que terá um conselho com seis pessoas debruçadas sobre o tema, lideradas pelo ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. Ainda no discurso da vitória, Doria lembrou que o PSDB criou o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal e apontou as prioridades, como o combate à miséria, a criação de emprego e renda e o compromisso com a saúde do estado, respeitando o teto de gastos. Os desafios de Doria não são poucos, nem são fáceis, mas os primeiros passos indicam que ao menos caminha na direção correta. “Imediatamente após a vitória, ele fez gestos importantes na direção da unidade”, diz Luiz Fernando Machado, citando como exemplo o convite à participação de Leite na campanha.
Mesmo os adversários reconhecem a qualidade da gestão de Doria à frente de São Paulo, assim como a forma obsessiva e organizada como costuma enfrentar qualquer disputa. Nesse aspecto, ele chega em alguns momentos a surpreender até sua própria equipe, como quando convocou uma reunião em meados de maio já para discutir detalhes da empreitada das prévias com o objetivo de montar uma estrutura de campanha jamais vista em disputas do tipo. Costuma ouvir conselhos, mas é duro de ser convencido a mudar estratégias que o fizeram ser bem-sucedido até aqui. Numa dessas exceções, adotou nos últimos tempos a ideia de tentar se vestir de maneira menos formal e topou até incorporar piadas sobre o seu estilo. Assim, o apelido “calça-apertada”, viralizado de forma maldosa pelos bolsonaristas, virou uma espécie de slogan oficial do tucano. Mais recentemente, topou até ser tratado como o “chato que o Brasil precisa” em vídeos oficiais que ressaltam sua eficiência administrativa. “Se trabalhar dezesseis horas por dia é ser chato, se cuidar da saúde e da economia é ser chato, então eu sou chato”, afirma. Para quem assume não gostar de conquistas pelos caminhos mais tradicionais, provar a eficiência desse marketing de fazer campanha ressaltando os próprios “defeitos” é mais um dos seus muitos desafios na longa e dura maratona política daqui para a frente na tentativa de chegar ao Palácio do Planalto.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767