Os desafios do centro em meio à polarização entre Bolsonaro e Lula
Enquanto o país se divide, as forças políticas menos radicais tentam sobreviver no ar rarefeito da polarização ideológica
Quanto maior o barulho na política, mais difícil é ouvir argumentos, debater ideias, fazer prevalecer o bom-senso. E o volume da gritaria aumentou bastante nos últimos dias, em razão da volta às ruas do ex-presidente Lula na sexta 8. Logo ao sair da cadeia em Curitiba, onde ficou 580 dias cumprindo pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, o petista atacou Jair Bolsonaro, a política econômica de Paulo Guedes, a “entrega” do país e a retirada de direitos sociais. O presidente rebateu no seu tom habitual: “canalha” e “presidiário” foram alguns dos termos escolhidos. “Está solto, mas continua com todos os crimes nas costas”, completou (corretamente). Nas redes sociais, em algumas manifestações e articulações, petismo e bolsonarismo vêm se retroalimentando desse ódio e reforçam um momento que tem dominado a política no Brasil e no mundo: a era dos extremos. Com Lula solto, tal histeria tende a crescer.
Diferentemente daqueles que o seguem na base da emoção, Lula possui um objetivo claro em mente: a campanha eleitoral de 2022. Embora ele esteja impedido de ser candidato porque continua enquadrado pela Lei da Ficha Limpa, suas falas e movimentação mostram que a prioridade é colocar o PT como protagonista, assenhoreando-se do eleitorado de esquerda. Dizendo-se com “tesão de 20 anos”, Lula falou à militância em Curitiba e em São Bernardo do Campo, reuniu-se com aliados como o ex-governador da Paraíba Ricardo Coutinho (PSB), anunciou um “discurso à nação” para este domingo, 17, no Recife, e participará de dois encontros cruciais para definir o voo petista nas eleições: a reunião da Executiva Nacional em Salvador na quinta-feira 14, e o congresso nacional da legenda, no dia 22, em São Paulo. Também pretende voltar a fazer suas tradicionais caravanas pelo país.
No extremo oposto do ringue, Bolsonaro está convencido de que a saída de Lula o beneficia diretamente. Antes do julgamento sobre a segunda instância, ele deu alguns sinais claros ao presidente do STF, Dias Toffoli, de que não questionaria a decisão em si. Na verdade, com Lula nas ruas, o capitão ganha a oportunidade de fazer aquilo que faz melhor: guerrear. Ele agora tem um inimigo temido por boa parte dos brasileiros e que vocifera de volta.
Enquanto o Brasil perde com essa radicalização, as pesquisas mostram que os dois protagonistas, de fato, precisam um do outro. Conforme revelou uma pesquisa VEJA/FSB realizada em outubro com presidenciáveis, Lula ainda é disparado o nome mais forte da esquerda e, mesmo se não puder concorrer em razão da Lei da Ficha Limpa, tem poder para reorganizar as forças dentro desse espectro político, e nada melhor que um presidente com tendências ditatoriais para Lula exercer sua verve de “protetor dos pobres” e dos direitos humanos. Bolsonaro também sai no lucro. A volta de um Lula radical pode ter o efeito de levar o presidente a reaglutinar em torno dele os eleitores que vinham se desapontando com seu governo, já que o fantasma do retorno do petismo ainda seria o mal maior. Em um possível confronto entre ele e Lula nas eleições de 2022, o capitão, por enquanto, se sai melhor, vencendo por 46% a 38%, conforme mostrou o levantamento VEJA/FSB.
Tal estágio de polarização, baseado no ódio e na repulsa ao outro, torna o ar bem mais rarefeito para as forças políticas de centro, que querem se apresentar com argumentos equilibrados e racionais. Em um ambiente conflagrado, fica difícil para um político (ou para o leitor de VEJA) defender pautas da direita, como a liberdade econômica e as privatizações, e adotar algumas ideias da esquerda, como os programas sociais, dentro de um governo que respeite a democracia, as liberdades individuais e os direitos humanos. O risco é não agradar a ninguém com essa postura. Quando prega maior liberdade na economia, essa pessoa passa a ser vista como “bolsominion”, amante da ditadura ou contra o aborto. Quando apoia programas de distribuição de renda, é encarada como “petralha”. Tamanha simplificação da política, ancorada em rótulos e associações mentirosas, só traz dividendos para os extremos, dificultando o diálogo e a criação de uma alternativa baseada no bom-senso.
Um dos maiores obstáculos para que o centro ocupe hoje o espaço entre Bolsonaro e Lula é justamente a inexistência de um rosto que personifique essas ideias. Não por falta de pretendentes, mas pela ausência de uma liderança natural nesse campo. Atualmente há pelo menos quatro potenciais presidenciáveis (uns mais à direita, outros à esquerda) nessa fatia do espectro político — João Doria, Luciano Huck, João Amoêdo e Rodrigo Maia. Mas, por motivos diversos, nenhum deles consegue hoje assumir essa condição. “Para a população é muito fácil identificar os extremos. Já o centro não tem uma cara definida”, afirma Mauro Paulino, diretor-geral do Datafolha. Ainda que não admita publicamente, Doria é o que mais tem se empenhado em viabilizar sua candidatura e surgir como alternativa. Sua principal estratégia é fazer de sua gestão em São Paulo uma vitrine, principalmente em crescimento econômico e segurança pública, sem perder de vista a agenda social. Na última terça, 12, ele visitou a região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres de São Paulo, e lançou ali projetos de geração de emprego e empreendedorismo. Na economia, tem se esforçado para trazer investimentos americanos, chineses e japoneses para o estado. Além disso, quando a hora chegar, vai investir na comparação com Huck, mostrando que, não bastasse ter sucesso na iniciativa privada, possui experiência na vida pública, o que faz dele um candidato mais confiável. Confiança, aliás, será a palavra-chave na construção da sua plataforma. Ele quer deixar claro que pode melhorar a vida do brasileiro e dos investidores, com estabilidade e cumprindo o que promete. Outra aposta do tucano é nas eleições municipais de 2020, com a conquista de prefeituras importantes que lhe dariam uma rede de apoio estadual para o voo nacional. O desafio de ganhar espaço fora de São Paulo, porém, se reflete no desempenho modesto de seu nome na pesquisa para 2022. Nos três cenários de primeiro turno abordados no levantamento VEJA/FSB, o tucano tem no máximo 5% dos votos. Em confronto direto com Bolsonaro no segundo turno, perderia por 46% a 26%.
Em paralelo, outro nome que pode consolidar uma liderança ao centro é o outsider Luciano Huck. No mesmo levantamento, Huck aparece hoje com a melhor performance ao centro. Numa das simulações para o segundo turno, por exemplo, ele perde para Bolsonaro no limite da margem de erro de 2 pontos (43% a 39%). Oficialmente, Huck também não assume a condição de candidato, mas vem participando de inúmeros eventos e de movimentos de renovação política. Nessas ocasiões, exibe um discurso que mistura a social-democracia ao liberalismo econômico, entremeado de apelos à moderação e histórias de pessoas pobres que ele costuma conhecer durante as gravações. Entre seus interlocutores políticos estão o ex-presidente FHC, o ex-governador Paulo Hartung (ES), o ex-deputado federal Roberto Freire, presidente do Cidadania, sigla favorita a receber sua filiação, e o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. A questão é que ninguém sabe se Huck vai mesmo arriscar a candidatura. Em 2018, ele ciscou, ciscou e pulou fora — justamente em uma eleição em que o eleitorado queria novidade. Sua cautela, porém, faz todo o sentido. Jogar-se numa campanha traz um grau de exposição pública exponencial para o pretendente e sua família. Qualquer deslize do passado ganha visibilidade imediata, gerando crises e trazendo dores de cabeça. Além disso, Huck terá de abrir mão de todos os seus contratos publicitários e do emprego na Globo, que lhe rendem, somados, cerca de 30 milhões de reais por ano. Mas, até aqui, ele está no jogo. Huck vem demonstrando excelente trânsito entre os caciques do DEM, como o próprio Maia e o prefeito de Salvador, ACM Neto, presidente da sigla. Embora o DEM ocupe três ministérios importantes no governo Bolsonaro (Casa Civil, Agricultura e Saúde), a cúpula evita se aproximar do Planalto e busca uma alternativa de centro, dividindo-se, por ora, entre Doria e Huck — a candidatura de Maia, apesar do seu desejo, é mais difícil. Na análise de um dirigente do DEM, a polarização chegará esgotada a 2022, a mesma avaliação feita pelo entorno de Huck. Em entrevista recente a VEJA, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse considerar forte a possibilidade de que a população se canse da gritaria dos extremos — ainda mais em um contexto em que a eleição está distante três anos.
É difícil avaliar o futuro, mas o cenário que acontece hoje no Brasil é o mesmo do exterior. O quadro político mundial da atualidade é de radicalização, como demonstram os grandes e recentes tumultos de rua no Chile e na Bolívia. Ou a vitória do kirchnerismo na Argentina, com Alberto Fernández — resultado eleitoral que anima Lula e a esquerda, que apostam no chamado “efeito Orloff”, materializado na volta da esquerda ao poder depois de uma experiência fracassada da direita. Ainda não há no horizonte demonstrações de que esse estado de espírito dê sinais de arrefecimento. Ao contrário. A frustração com o status quo é o combustível que faz com que os humores do eleitorado balancem de um extremo ao outro. “As pessoas que foram demitidas ou que viram seu salário perder poder de compra ficam mais suscetíveis aos discursos radicais”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa. O caso brasileiro tem ainda uma peculiaridade: o enfraquecimento de toda a classe política, a partir dos inúmeros escândalos de corrupção levantados pela Lava-Jato. O PT é exceção porque seus seguidores são como torcedores de um clube de futebol. Mesmo que o time ganhe com um pênalti inexistente, continuam a defender suas cores. Para Bryan McCann, professor de história brasileira da Universidade Georgetown, em Washington, a perda de representatividade do MDB, que ocupava esse lugar de fiel da balança desde a redemocratização, deixou um vazio, apesar de todos os inúmeros defeitos do partido. “O MDB sempre teve esse papel de abafar extremismos ideológicos”, diz. Verdade. Mas outra fórmula precisa ser criada. Afinal de contas não dá para construir equilíbrio com práticas reprováveis e corrupção.
Se a situação já é difícil para Doria e Huck, mais desafiador ainda é o tabuleiro para candidatos que estão mais próximos dos extremos, como o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), o terceiro colocado no primeiro turno de 2018, e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). Ciro sentiu-se traído pelo ex-presidente e pelo PT na eleição do ano passado, quando Lula atuou para esvaziar suas alianças eleitorais, e agora pretende, com Rede, PSB e PV, criar uma alternativa de centro-esquerda e isolar o petismo. “Fora o PCdoB, aliado histórico do PT, não sei qual aliança eles (petistas) vão fazer”, diz Carlos Lupi, presidente do PDT. O sonho é livre, mas mesmo quem não gosta do Lula sabe que ele hoje é o líder inconteste da esquerda. Do outro lado, eleito na onda bolsonarista e há pouco afastado do clã presidencial justamente após deixar claro que almeja o Planalto, Witzel teria dificuldades de ir em direção ao centro, muito em razão da sua política de segurança pública, ideologicamente tão à direita quanto a do capitão. Realmente será muito complicado ocupar um espaço já dominado pelas figuras de Lula e Bolsonaro, com quem ambos são identificados e de alguma forma disputam.
Os mais otimistas defensores da volta ao centro acham que a política do ódio, um jogo de tamanha intensidade e que terá de ser jogado por tanto tempo, pode levar à busca por vozes mais moderadas. Na visão dessa corrente, além da saturação do tom bélico, o vazio de ideias dos radicais em algum momento gerará interesse por uma terceira via. De fato, o Brasil já viveu — e superou — outros momentos agudos de radicalização política, caso do segundo governo de Getúlio Vargas, entre 1951 e 1954, e da gestão de João Goulart, entre 1961 e 1964. “Um resultou no suicídio do presidente, e o outro no golpe militar que levou à ditadura”, lembra a historiadora Lilia Schwarcz. Nas últimas décadas, Itamar Franco destacou-se como figura de centro — ele herdou o fiasco do governo Collor sem provocar sobressaltos e teve a sabedoria de apostar no Plano Real. Michel Temer seguia um caminho parecido de reconstrução do país pós-PT até ser abatido pelas denúncias de corrupção. No período de redemocratização, no entanto, nenhuma figura encarnou tão bem o dom da moderação quanto Tancredo Neves, que articulou a sua eleição pelo Congresso pavimentando de forma pacífica o fim do regime militar. “Não são os homens, mas as ideias que brigam”, ensinava ele. O Brasil precisa exatamente disso: de menos insultos e de mais soluções.
Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661