Os grandes desafios
VEJA ouviu economistas e pesquisadores para elencar os problemas mais urgentes que o novo governo terá de atacar
As semanas daqui para a frente serão de alta especulação sobre quais medidas o novo governo vai efetivamente tomar na economia a partir de 1º de janeiro. A corte que vem por aí aproveitará a reforma da Previdência da era Temer ou apresentará um plano original? Alguma estatal vai ser afinal privatizada? E a cesta de impostos, encolherá ou se expandirá? Apesar de a crise ter arrefecido, atenuada por um ainda vagaroso retorno do crescimento, o governo eleito terá de desatar nós antigos e apertados, que estrangulam o país. É verdade que a inflação anda abaixo da meta de 4,5% ao ano e as reservas internacionais (uma espécie de poupança do Brasil) se situam confortavelmente acima dos 380 bilhões de dólares. Mas a Previdência continua abocanhando a maior parte do Orçamento federal — e o déficit fiscal só aumenta. Para cobrir o rombo, ano após ano o governo precisa tomar dinheiro emprestado a juros, o que fez a dívida pública inflar de 60% para 84% do PIB nos últimos quatro anos. A escassez de dinheiro para investir tem mantido o desemprego em patamar elevado, castigando a população. Para elencar os problemas mais urgentes e profundos da economia, aqueles que devem estar no topo da lista, VEJA ouviu alguns dos principais economistas e especialistas no assunto do país. O resultado está a seguir.
Previdência
O alerta vermelho vem soando há anos: sem uma reforma que imponha regras mais duras à aposentadoria (a primeira delas, uma idade mínima avançada), o sistema previdenciário vai entrar em colapso. Na ponta do lápis, quando se colocam a coluna das contribuições de um lado e a dos pagamentos a pensionistas e aposentados do outro, constata-se que em 2017 faltaram mais de 268 bilhões de reais para fechar a conta, aí considerados os setores público e privado. No Orçamento de 2019, o buraco previsto se alarga para 308 bilhões de reais. O xis da questão é convencer os brasileiros a aceitar cortes em benefícios futuros e persuadir parlamentares a enfrentar a resistência daqueles que lhes dão votos. Uma reforma encaminhada por Michel Temer ao Congresso resultou falha e insuficiente. Uma alternativa aventada por economistas é a implantação paulatina de um sistema de capitalização, em que cada trabalhador depositaria uma parcela de seu salário em uma conta própria reservada para os dias de velhice. Em qualquer cenário, em um primeiro momento perdas são inevitáveis. O desafio é ter habilidade — e força política — para seguir adiante com uma reforma tão antipática quanto imprescindível.
Carga tributária
Pincelada rápida no volume de impostos que se paga no Brasil: o Estado reteve para si quase 35% de todo o PIB no ano passado. A porcentagem é natural e esperada em países desenvolvidos, que proporcionam aos cidadãos saúde, educação e moradia de qualidade. Aqui, ao contrário, a contrapartida são infraestrutura e serviços abaixo da crítica. Agrava a situação o fato de o sistema de cobrança ser um dos mais complexos do planeta: segundo um levantamento do Banco Mundial, cada empresa passa em média 81 dias por ano procurando entender e pagar seus impostos, bem mais que os treze dias registrados nos países da América Latina e do Caribe. Uma medida simples e eficaz para amenizar esse gargalo já foi várias vezes aventada e nunca posta em prática: trocar a sopa de letrinhas que são PIS, IPI, ICMS, ISS e afins por um tributo único, o imposto sobre valor agregado (IVA). O mais desafiador entre os obstáculos à mudança é que a simplificação tiraria dos estados e municípios a arma das alíquotas diferenciadas (as do ICMS chegam a mudar setenta vezes por semana no Brasil) na eterna guerra fiscal para atrair mais empresas. Triste o país em que a elementar providência de pôr ordem na bagunça tributária vira um problemão.
Déficit fiscal
Quando o governo não arrecada impostos suficientes para pagar seus compromissos, instala-se o déficit fiscal — e o do Brasil, puxado pela necessidade de cobrir o rombo da Previdência, examinado anteriormente, não para de se alargar. Dados de 2017 põem o déficit no patamar de 124 bilhões de reais; em 2019, a previsão é que ele suba para 139 bilhões. Ao lado da reforma previdenciária, a medida mais premente é o controle de despesas. O teto implantado em 2016, que limita por vinte anos a alta do gasto público à variação da inflação, é um passo nessa direção, mas, ao mesmo tempo, engessa investimentos — e já há quem busque meios de burlar o gargalo. Um espinho na garganta é consenso: os impostos terão de subir.
Dívida dos Estados
À beira de entrar em colapso, sem dinheiro para pagar o salário dos servidores, a pensão dos aposentados e as despesas correntes, o Rio de Janeiro foi obrigado a decretar estado de calamidade financeira em 2016 e a pedir socorro ao governo federal. A situação do Rio é o exemplo mais gritante de um problema que atinge boa parte dos estados: outros quinze estão acima do limite prudencial de despesas com folha de pagamento (há quatro anos, eram oito) estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, criada justamente para impor um freio ao endividamento. Muitos governos estaduais, aliás, usam e abusam de mecanismos para driblar as regras dessa lei. Como resultado, a dívida líquida total dos estados bate em 745 bilhões de reais, e o Planalto terá de lidar com uma fila de governadores de pires na mão — uma relação de dependência danosa para todas as partes, mas que nenhum poder público até hoje conseguiu desatar.
Desemprego
A economia cresce em marcha lenta e o mercado de trabalho não dá sinais de recuperação: são 12,7 milhões de brasileiros desocupados, segundo o IBGE, sem falar nos 4,8 milhões que desistiram de buscar emprego. Há a expectativa de que a mudança de governo promova certo alento no nível de confiança do empresariado e dos investidores, que adiam projetos à espera de medidas que coloquem a dívida pública em trajetória sustentável e resolvam os gargalos regulatórios que burocratizam a vida do setor privado — inércia que pôs a taxa de investimentos do país, proporcionalmente ao PIB, em seu pior patamar em duas décadas. Enquanto isso não ocorrer, o novo governo terá de conviver com uma conjuntura desastrosa, na qual o Estado não investe porque não tem recursos e o setor privado não investe porque não tem confiança. Nessa conjuntura, procurar emprego onde?
Inchaço do Estado
Gigante pela própria ineficiência, o Estado brasileiro resiste às tentativas de redução de seu tamanho. As privatizações esbarram nas divergências sobre o alcance e a velocidade do processo — sem falar na bandeira corporativo-nacionalista empunhada pelo funcionalismo público e nos partidos que colocam aliados em cargos-chave. Quem defende a venda das estatais argumenta que os benefícios viriam não só do dinheiro arrecadado, mas também da maior produtividade. Quem é contra brande com a ameaça de trocar um monopólio público por um privado, situação potencialmente pior para a população em geral. Empresas públicas transferidas à iniciativa privada enfrentaram oposição feroz, que emperrou leilões e desgastou o governo. O projeto de desestatização da Eletrobras empacou no Senado, sem previsão de votação. No Brasil, falar em privatizar é fácil. Fazer é que são elas.
O QUE ATACAR PRIMEIRO
Economistas e especialistas analisam o cenário e opinam sobre as medidas mais urgentes que devem ser tomadas pelo novo governo para fazer o Brasil crescer
Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central
“A prioridade é a recuperação do superávit primário para a faixa de 2% a 3% do PIB o mais rápido possível. Para isso, será preciso quebrar paradigmas e redobrar o esforço para reformar de modo significativo pelo menos três áreas: Previdência, privatizações e administração pública. O cardápio é conhecido. O problema está na capacidade de executar”
Christopher Garman, cientista político
“A reforma tributária é um pré-requisito para combater a falta de produtividade da economia brasileira. A estrutura de tributos no país é muito ineficiente. Poderíamos ter, por exemplo, uma substituição do ICMS e de outros vários impostos cumulativos por um tributo único. Não acho, porém, que haja espaço para uma redução no volume de impostos que temos hoje”
Monica De Bolle, diretora de estudos da América Latina na Universidade Johns Hopkins
“O tão necessário ajuste fiscal não tem como ser uma medida popular. A princípio, impactará negativamente a economia, porque isso está em sua natureza, mas, se for benfeito, depois a situação econômica vai melhorar e avançar. Não há mágica: é preciso cortar despesas e aumentar impostos. Isso passa por remover todas as desonerações que foram concedidas aos diversos setores”
Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central
“Podemos imaginar várias gradações de reforma da Previdência, mas, para alcançar uma mudança de expectativa para valer, ela precisa ser suficientemente forte. Também destaco as finanças dos estados como um grande gargalo: continuam muito complicadas. Não dá para o caixa federal prestar socorro a cada nova dificuldade. O país deve repensar de uma vez por todas o pacto federativo”
Bernard Appy, ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda
“As contas públicas estão em uma trajetória insustentável, o que aprofunda o déficit primário, hoje em torno de 2% do PIB. Se o governo não for capaz de arcar com a própria dívida, a inflação poderá reaparecer e o nível de investimento no país, despencar. Está muito claro que, sem resolver a questão fiscal, o Brasil não vai crescer nem gerar os empregos de que tanto precisa”
Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia/FGV
“A reforma da Previdência é fundamental para resolver o desequilíbrio fiscal do país, que gasta mais do que arrecada. A receita é estruturalmente menor do que a despesa. E isso não acontece por causa da recessão ou do desemprego, mas porque as bases tributárias não são suficientes para fazer frente ao gasto do setor público. Será difícil vencer essa situação sem aumentar impostos”
Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda
“O próximo governo terá o imenso desafio de resolver a insolvência fiscal do país. Desde 2013 o Brasil aumenta a relação entre dívida pública e PIB — pelo critério do FMI, ela já representa mais de 80%. Um porcentual como esse pode levar a um colapso das finanças públicas. Basta olhar o cenário internacional para perceber que nenhuma outra nação emergente apresenta uma proporção tão desfavorável”
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição especial nº 2606