Durante muito tempo circulou em Brasília a máxima de que, se havia governo, o MDB estava nele. E não à toa. Mesmo sem nunca ter eleito um presidente, o partido exerceu grande influência sobre praticamente todos os governos pós-redemocratização: Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e, claro, Michel Temer, que era da sigla e assumiu após o impeachment da petista. Tal protagonismo se deu à base de expressivas votações de parlamentares e formações de grandes bancadas que, no auge, chegaram a ocupar um quinto das cadeiras da Câmara, com mais de 100 integrantes. Desde 2006, entretanto, essa força vem minguando e hoje soma 34 deputados federais, o que faz dela apenas a sexta maior bancada da Casa. Com isso, perdeu espaço para o Centrão e deixou de ter protagonismo no governo da vez, liderado por Jair Bolsonaro. Não por acaso, uma influente, experiente e habilidosa ala do partido trabalha para recuperar o espaço perdido. E, para isso, só há um jeito: concentrar esforços, incluindo os recursos financeiros do Fundo Eleitoral, com o objetivo de eleger o maior número de parlamentares, nem que para isso seja necessário deixar em segundo plano a candidatura presidencial — embora uma parte da sigla, incluindo o presidente Baleia Rossi, ainda tente levar adiante a candidatura da senadora Simone Tebet.
Não se trata, entretanto, de uma preocupação exclusiva do MDB. Entre os grandes e médios partidos, a eleição legislativa é considerada tão ou mais importante que a disputa presidencial. Há, basicamente, três motivos para isso. Um é clássico: quanto mais deputados uma sigla tiver, mais poder de pressão sobre o futuro governo poderá exercer. Outra motivação é dinheiro. Os fundos destinados ao financiamento político (Partidário e Eleitoral) nunca foram tão generosos: em 2022, as duas fontes somam 6 bilhões de reais, quase 200% maior que em 2018. É o tamanho da bancada que determina a fatia que cada partido recebe. O mesmo cálculo é feito para dividir o tempo de propaganda na TV. Por fim, o Congresso nunca teve tanta influência sobre o Orçamento da União, como no caso das “emendas do relator”, modalidade fortalecida na gestão Arthur Lira (PP-AL), que virou uma forma de injeção direta de recursos para os deputados promoverem seus nomes nas bases. Em 2022 serão 16,5 bilhões de reais.
A luta para aumentar as chances de ter uma boa bancada a partir de 2023 movimenta os partidos em várias frentes. Uma delas é a janela partidária, o período de trinta dias (de 3 de março a 1º de abril) em que é permitido ao deputado trocar de legenda sem que corra o risco de perder o mandato. Há expectativa de uma movimentação intensa em razão de alguns episódios relevantes. O primeiro foi a criação do União Brasil, fusão do DEM com o PSL, que gerou, por ora, a maior bancada da Câmara (81 deputados). A outra foi a filiação de Bolsonaro ao PL. Com isso, o partido do presidente deve receber boa parte das duas dezenas de deputados que estavam no PSL e que são fiéis a ele. A expectativa é que a sigla, que hoje tem 43 deputados, chegue a setenta.
Na direção oposta, dentro da mesma movimentação, o União Brasil deve perder dez cadeiras nas próximas semanas, conforme estimativa do presidente Luciano Bivar. Também deve sofrer baixas o PDT de Ciro Gomes, cujas fissuras ficaram evidentes na votação da PEC dos Precatórios, quando pelo menos cinco parlamentares sinalizaram que deixarão a legenda. Parece pouco, mas é muito. Mais do que nunca, é importante ter um grande número de deputados antes da eleição. Ao contrário de 2018, quando a renovação política deu o tom, a avaliação é que neste ano a taxa de reeleição seja maior. Até por causa da dinheirama das emendas, usadas na maior parte das vezes para irrigar redutos eleitorais. “Os parlamentares estão com uma estrutura muito maior, podendo mostrar serviço de forma mais organizada”, diz Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara, que arrisca que o seu partido pode conquistar até 30% mais cadeiras — hoje tem 42 e, com isso, rivaliza com o PL na posição de maior partido do Centrão.
Outro caminho para aumentar as bancadas passa pelas federações, como são chamados os acordos partidários que, na prática, transformam dois ou mais partidos em um só, por um período de quatro anos (ou seja, até as eleições de 2026). “Não por acaso, vemos vários partidos tentando viabilizar a federação: se um (partido) não faz, a chance de ficar menor é muito grande”, afirma o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria. Recentemente, por exemplo, o nanico Cidadania anunciou que assinará um acordo do tipo com o PSDB até o fim de maio. Uma vez formadas, as federações se equivalem às antigas coligações: juntos, os partidos somam suas votações para a distribuição das cadeiras. A comparação termina por aí. Isso porque, embora respeitem a autonomia de cada partido, as federações manterão as agremiações unidas por quatro anos.
Por ser um tipo de arranjo jamais visto na história política brasileira, a novidade enfrenta obstáculos diversos. A dificuldade em contemplar interesses regionais é o que tem travado, por exemplo, as conversas entre PT e PSB. Nas contas do deputado Júlio Delgado (PSB-MG), caso a federação com o PT seja aprovada a tempo, poderá eleger um total de 33 deputados, três a mais do que hoje — e sem ela, apenas 23. O problema é que, além dos obstáculos que já se impõem a esse tipo de acerto, o Supremo Tribunal Federal acrescentou outro ao estender o prazo até 31 de maio, portanto, após o fim da janela partidária. Isso coloca os interessados em trocar de legenda numa espécie de voo cego, já que não sabem com clareza a quem o novo partido apoiará e com quem se aliará.
Enquanto tateiam as possibilidades do novo terreno das federações, os partidos não descartam uma velha “muleta” para eleger parlamentares: o tradicional cordão dos puxadores de votos. Em 2018, Eduardo Bolsonaro bateu o recorde de votação (1,8 milhão) e ajudou o PSL a se tornar a maior bancada da Câmara — ele está de mudança para o PL. No PT, em meio às intrincadas conversas em torno de uma federação com o PSB, setores do partido sonham em convencer Guilherme Boulos a desistir da candidatura ao governo de SP em nome de uma candidatura a deputado federal, o que poderia ampliar a bancada do PSOL e turbinar a base de apoio a um eventual governo Lula — uma preocupação recorrente do petista. Além disso, aliviaria a congestionada via de esquerda para a corrida ao Palácio dos Bandeirantes, deixando o caminho mais livre a Fernando Haddad, do PT. Falta combinar com Boulos, é claro. No PSDB, os tucanos apostam na enfermeira Mônica Calazans, a primeira vacinada contra a Covid-19 no Brasil. Há quem veja hoje com ressalvas esse tipo de expediente. “Ter um puxador de votos ainda é muito importante e sempre vai haver espaço para figuras mais midiáticas, mas a eleição municipal mostrou que políticos tradicionais estão ganhando força de novo”, pondera o cientista político Claudio Couto, professor da FGV.
A disputa por mais espaço na Câmara é considerada tão prioritária que vários partidos não hesitariam em abandonar seus candidatos a presidente. Um exemplo é o Centrão. Legendas como PL, PP e Republicanos flertam com o palanque de Lula em vários estados do Nordeste, onde o petista é mais popular que Bolsonaro. O União Brasil também admite permitir aos diretórios estaduais apoiar quem quiserem. “Vamos trabalhar por uma unidade em torno de uma terceira via. Se isso não for possível, uma alternativa pode ser liberar os estados”, afirma o deputado Junior Bozzella, que defende uma composição em torno de Sergio Moro (Podemos). Fora das conversas por federações, o PSD de Gilberto Kassab usa como ativo a conhecida complacência com acertos regionais, da esquerda à direita, para atrair parlamentares. Nesse contexto, ficaria em segundo plano a pré-candidatura de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, ou do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que pode trocar o PSDB pelo PSD. No ninho tucano, aliás, uma ala da sigla, com Aécio Neves à frente, prefere que o partido não tenha candidato a presidente — hoje o posto pertence ao governador paulista João Doria — e concentre seus esforços nos deputados.
Essa energia gasta pelas legendas para ampliar as suas representações no Congresso é legítima e ocorre em todo o mundo democrático. No Brasil, no entanto, o processo segue em meio à conhecida balbúrdia generalizada que marca a nossa vida partidária, como o excesso de partidos (32), a falta de coerência programática e ideológica da maioria deles e o jeito antiquado das articulações, sempre marcado por interesses pouco republicanos. Por isso, a luta saudável muitas vezes se transforma num combate na lama, no qual a democracia costuma ser a grande derrotada. Cabe ao grande juiz dessa contenda, o eleitor, evitar que isso ocorra, eliminando os maus jogadores pelo poder do seu voto.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778