Pré-candidatos de SP pegam carona em reivindicação de entregadores de apps
Depois de fazerem barulho em meio à pandemia, profissionais viram alvos da demagogia eleitoreira, que deseja regular com regras antigas um serviço moderno
Há pouco mais de uma semana, Guilherme Boulos (PSOL), ex-presidenciável e candidato à prefeitura de São Paulo, disse em seu canal no YouTube que os entregadores de aplicativos são uma categoria que “já nasceu sem direitos” e que “a pandemia mostrou quanto esses trabalhadores são imprescindíveis para a sociedade”. Boulos não disse, mas o aumento da visibilidade desses profissionais também revelou outra coisa: eles se tornaram alvos do interesse de políticos em busca de um novo nicho para o proselitismo eleitoral. Do PSOL ao Novo, nada menos que 88 deputados federais, 75 estaduais, nove senadores, um governador e 54 vereadores apareceram no Twitter desde o fim de junho tentando pegar carona nos protestos de motoboys. No período, houve cerca de 515 000 menções ao movimento nessa rede social, segundo um estudo da consultoria Bites feito a pedido de VEJA.
Todo esse apetite eleitoreiro derrapou feio na demagogia, arrastando no vácuo uma série de propostas ridículas. Boulos promete, se for eleito prefeito de São Paulo, obrigar que um porcentual do faturamento dos aplicativos vá para um fundo de assistência e seguridade dos entregadores. Também vai debater a proposta de criar serviços municipais para concorrer com as empresas. Um absurdo. “Estamos conversando com a categoria e ouvindo suas demandas”, justifica. Sua proposta de enfiar o Estado em um serviço que cresceu sem precisar dele não é solitária. Jilmar Tatto, o concorrente do PT para o mesmo cargo, anunciou um app público para disputar o mercado — outra sandice. “Em vez de iFood e Uber, eles poderão usar esse aplicativo municipal e ter um aumento de remuneração. É o que a prefeitura já faz com táxis”, diz, mal lembrando os tempos em que os taxistas atraíam apoio político até quando ficavam contra a concorrência, como ao questionar a chegada da Uber.
Na maior parte dos casos, disfarçado de boa intenção de melhorar a vida dos entregadores está o olho gordo de semear votos em uma classe estimada em mais de 5 milhões de trabalhadores no país. O número mostra o potencial de exploração do tema nas próximas eleições. A tentação de pegar esse caminho independe do credo ideológico da sigla. “Essa pauta pode ser capitalizada por partidos de várias posições no espectro político”, diz a cientista política Carolina de Paula.
A onda de apoio aos entregadores começou em maio, quando Bolsonaro vetou a inclusão da categoria entre os beneficiários do auxílio emergencial. A gritaria mobilizou da deputada Tabata Amaral (PDT-SP) à ex-presidente Dilma Rousseff, mas nenhum político conseguiu o engajamento que o motoboy Paulo Lima, 31 anos, o “Galo”, atingiu no debate. Dono dos perfis @galodeluta e @entregadoresantifascistas, ele se destacou de forma espontânea como uma liderança do movimento e não demorou a ser picado pela mosca azul eleitoral: filiou-se ao PMN, que quer lançá-lo candidato a vereador na capital paulista.
Se a ideia avançar, não será o primeiro caso de campanha impulsionada dentro desse tipo de movimento. André Janones (Avante-MG) emplacou como deputado federal após ter virado uma espécie de porta-voz dos caminhoneiros nas redes sociais na greve de 2018. A categoria, aliás, tem um paralelo com os motoboys: organizou um movimento nacional com uma liderança pulverizada e nenhum rosto político conhecido à frente. “Os pré-candidatos a vereador em todo o país vão tentar repeti-lo, propositada ou intuitivamente”, avalia André Eler, gerente de relações governamentais da consultoria Bites.
As doses cavalares de demagogia lançadas nessa discussão jogam uma nuvem de poeira no debate. Para combater a “precarização do trabalho”, os políticos tentam enquadrar as modernas empresas de serviços na CLT criada na década de 40. “Não vejo como regulamentar isso sem tirar dinamismo da situação”, avalia Rodrigo Shiromoto, sócio do escritório ASBZ Advogados. A Justiça, aliás, já vem brecando esse tipo de abordagem. A maioria das decisões tem rejeitado o reconhecimento de vínculo empregatício entre aplicativos e entregadores. As companhias têm defendido nos tribunais a sua posição de que tocam um modelo de negócio no qual a relação com os entregadores não é de emprego, mas de parceria.
É fato que as condições de trabalho, de segurança e a baixa remuneração são problemas desse mercado que merecem atenção. Mas, se é possível um avanço nessas questões, ele tem mais chances de ocorrer via negociação direta entre as empresas e seus parceiros. No começo da semana, o diretor executivo da Uber, Dara Khosrowshahi, publicou um artigo no jornal The New York Times em que admite ter apreendido lições com a pandemia, como a de que os trabalhadores precisam ter mais direitos e segurança financeira. “Nosso atual modelo de emprego está ultrapassado e injusto”, escreveu. Para o advogado Nelson Mannrich, professor de direito do trabalho da USP, a solução para a questão terá de ser mesmo de alcance global. “Temos de criar apenas uma legislação mínima para garantir direitos básicos e fundamentais. O restante tem de ser objeto de negociação com as empresas”, avalia. Por aqui, além da ideia despropositada de colocar o Estado para competir com os aplicativos, há uma corrida no Congresso para a proposição e aceleração de projetos de leis sobre o tema, numa ânsia frenética por regulamentação, movida quase sempre por ideias desbotadas, voluntarismo ignorante e pela velha demagogia.
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700