Como os governadores brasileiros preparam o relaxamento da quarentena
Com a economia parada e o apoio ao isolamento em baixa, líderes de São Paulo, Rio e outros estados fazem planos para afrouxar medidas
Duas semanas depois da primeira morte por coronavírus no Brasil, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), em 11 de março, deu a largada: mesmo que de forma limitada, abriu a porteira dos decretos em série que botaram a nação de quarentena praticamente de cabo a rabo. O inimigo chegara ao país deixando um rastro de milhares de mortos mundo afora, e o clima que se instalou por aqui tinha muito de medo — o que ajudou na adesão ao apelo para ficar em casa — e outro tanto de incerteza: por quanto tempo seria preciso isolar a população até que o mal estivesse sob controle? Era comum apontar junho, quando, segundo o Ministério da Saúde, a pandemia entraria em declínio. Mas, na mesma velocidade com que o vírus se espalhou, cresceu a pressão para afrouxar a política de ruas vazias e lojas fechadas que atingiu os grandes centros. A angústia que tomou conta da economia ganhou ares de desespero diante dos prolongamentos sucessivos das medidas de isolamento. O setor de comércio calcula em 115 bilhões de reais o prejuízo no período. Sob a ameaça de quebradeira geral e com o aumento das vozes contrárias soprando nos ouvidos, governadores de alguns dos principais estados acharam por bem fazer ao menos um gesto político: indicar uma data e um plano para o início do fim do isolamento em massa.
O gesto mais representativo veio de São Paulo, estado que tem o maior número de mortos e infectados e o que mais fincou trincheira na defesa da política de isolamento social quando esta virou alvo das críticas e gestos de confrontação diários do presidente Jair Bolsonaro, desde sempre o maior patrocinador do desmonte da estratégia, tida pela Organização Mundial da Saúde como a mais eficaz contra a Covid-19. Mais recentemente, em razão dessa opção, o tucano João Doria virou alvo de carreatas pelas ruas e pedidos de impeachment nas redes sociais de gente que defende a volta ao trabalho (veja a reportagem na pág. 36). Para acalmar os ânimos, anunciou um plano de relaxamento da quarentena a partir de 11 de maio, por regiões, segundo parâmetros de saúde como número de casos e capacidade do sistema público para absorver pacientes graves, baseados em estudos de monitoramento da doença feitos pela Unesp. Liderada pelos secretários Patricia Ellen (Desenvolvimento Econômico) e Henrique Meirelles (Fazenda), a ala econômica do governo fez ecoar no Palácio dos Bandeirantes o forte recado das entidades empresariais. “O comércio está pagando a conta da pandemia”, diz Alfredo Cotait Neto, presidente da poderosa Associação Comercial de São Paulo e um aliado de Doria.
Outro que vai flexibilizar é Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, estado com a maior população idosa do Brasil, que já pôs de pé um plano para a reabertura do comércio em maio, no modelo que chamou de “distanciamento social controlado”. Cada região terá uma classificação conforme sua capacidade hospitalar e o número de casos. Se a primeira variante baixar e a segunda aumentar, voltará a quarentena. “É como se fôssemos aplicar um medicamento controlado, que precisa de dosagem adequada”, diz. Nas últimas semanas, prefeitos e empresários bateram virtualmente à sua porta para repetir o mantra de que “o caos econômico também mata”. “Os governos afirmam que querem salvar vidas e, por isso, tomam medidas radicais. Eu pergunto: salvar que vidas? Muitas pessoas morrerão por falta de recursos”, afirma a presidente da Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), Simone Leite. No Rio, Wilson Witzel (PSC) anunciou um plano que prevê reabrir shoppings e lojas de rua a partir de 11 de maio.
Além da pressão empresarial, outro fator que pesou foi a troca de guarda no Ministério da Saúde. Com Nelson Teich, a prioridade é viabilizar quanto antes o fim do isolamento social. “O afastamento é uma medida absolutamente natural e lógica na largada, mas ele não pode não estar acompanhado de um programa de saída”, disse Teich na quarta 22, quando anunciou um manual para quem pretende voltar à normalidade. “Vamos desenhar (um plano de saída), dar suporte a estados e municípios.” Também pesou a perda de apoio ao confinamento. Doria, por exemplo, ganhou prestígio ao virar defensor da quarentena, mas levantamentos diários feitos por sua equipe nas redes sociais indicam um enfraquecimento da adesão da população à quarentena e da aprovação do tucano como gestor de crise. No estado, o respeito ao isolamento, que batia no começo na casa dos 60%, caiu para 51% na semana passada.
Mesmo quando baseada em monitoramento científico, como no caso de São Paulo com a Unesp, a mudança de postura tem riscos. A maioria dos especialistas acredita que o pico está por vir. A cena de mortos sendo depositados em vala comum em Manaus foi um duro alerta para o fato de que ainda não é possível minimizar a pandemia. Os gestores admitem em reservado que os casos devem aumentar, mas dizem que estão mais preparados e vão se armando de medidas como obrigar ao uso de máscaras, exigir a utilização de álcool em gel, limitar o número de clientes em estabelecimentos e determinar que as pessoas fiquem longe umas das outras. Um episódio em Blumenau na quarta 22 mostrou a diferença entre a teoria e a prática. No dia em que parte do comércio voltou a abrir em Santa Catarina, o primeiro estado a flexibilizar a quarentena, uma pequena multidão, incluindo crianças e idosos, aglomerou-se na porta de um shopping antes da abertura, para depois entrar de forma desenfreada no centro comercial. Se a implementação da política de isolamento foi difícil, a saída sob pressão pode ser ainda mais complexa e delicada.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684