Primeiros embates mostram que jogo no Congresso começou mal para Lula
Na semana em que completou 100 dias, o governo do petista deu mais demonstrações de que está longe do objetivo de formar uma base parlamentar ampla
Logo após a vitória na eleição de 2022, o presidente Lula definiu como prioridade a formação de uma base parlamentar que, além dos tradicionais partidos de esquerda, deveria reunir legendas de centro. Na semana em que completou 100 dias, o governo do petista deu mais uma demonstração de que está longe de cumprir esse objetivo e colecionou uma série de dificuldades no Congresso — não em votações espinhosas, mas em ritos meramente burocráticos. O tamanho do desafio à frente dos articuladores políticos de Lula ficou claro com o início dos trabalhos das comissões destinadas a analisar projetos considerados essenciais para o governo, como as medidas provisórias que recriaram o Minha Casa, Minha Vida e o Bolsa Família. Normalmente, a tramitação nesses colegiados ocorre sem turbulências, que são quase sempre reservadas para o plenário da Casa. Não foi o que ocorreu desta vez. Ao invés de calmaria, houve cenas de sufoco, articulações de última hora e ameaças de boicote, sinais evidentes de que o jogo no Congresso começou mal, muito mal, para o novo governo.
Horas antes da abertura dos trabalhos das comissões, na terça-feira 11, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, foi pessoalmente à Câmara pedir agilidade na análise das MPs, com o objetivo de abrir caminho para a votação do novo marco fiscal, que ainda não foi apresentado, mas é considerado a prioridade do Palácio do Planalto neste primeiro semestre. Ao fim do encontro, um sorridente Padilha diagnosticou um “ambiente positivo” e anunciou um acordo para que as medidas avançassem com tranquilidade. Segundo o ministro, a largada nas comissões mostraria que, enfim, estava encerrada uma disputa travada entre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sobre como deve ser a tramitação das medidas provisórias. O impasse, que se arrasta há mais de dois meses, vinha paralisando a tramitação de matérias de interesse do Planalto, que finalmente veria sua agenda legislativa avançar sem sobressaltos. O discurso otimista de Padilha não resistiu ao confronto com a realidade.
Chegada a hora marcada para a sessão, a ausência de deputados de centro, especialmente de PP, Republicanos, União Brasil e MDB, impedia o início dos trabalhos. No canto do plenário, o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), disparava telefonemas pedindo o comparecimento dos parlamentares. Ao lado dele, o senador Otto Alencar (PSD-BA), aliado de primeira hora de Lula, reclamava que a situação era lamentável. Já Renan Calheiros esbravejava que o episódio revelava a atuação de “forças ocultas” — referindo-se a Arthur Lira, de quem é arqui-inimigo — para atrapalhar o governo. “Está usando as MPs para fazer esse tipo de chantagem. Nunca houve isso aqui no Congresso”, dizia Renan, desconsiderando o fisiologismo que marcou todos os governos desde a redemocratização. Uma das sessões foi suspensa temporariamente, e a chegada do deputado que garantiu o quórum para o início dos trabalhos rendeu até gritos e salva de palmas.
Cada comissão tem 26 integrantes titulares, dos quais sete senadores e sete deputados são necessários para garantir o quórum mínimo. Se há dificuldade para assegurar a presença mínima de parlamentares, imagine como será complicado convencê-los a votar em projetos impopulares ou que envolvam interesses gigantescos, como o novo marco fiscal. “Bote como manchete assim: ‘Foi uma vitória do governo’. A despeito de tudo, foram instaladas três comissões”, comemorou Randolfe Rodrigues, que evitou falar dos próximos passos para unificar uma base governista. “Eu prometi que, se instalassem essas comissões, eu ia tomar pela primeira vez na minha vida uma dose de cachaça. Isso, para mim, é inusitado. Então me deixa celebrar hoje e aí semana que vem a gente vê”, continuou. Os deputados que estavam gazeteando a sessão e chegaram já no fim dos trabalhos argumentaram que estavam em um almoço com Lira e, por isso, se atrasaram. Nos últimos dias, o presidente da Câmara ficou mais recolhido, porque se recuperava de uma cirurgia de hérnia umbilical, o que também foi usado como argumento para não acompanhar Lula na viagem à China.
O recolhimento não impediu Lira de articular a formação de um poderoso bloco na Câmara, integrado por 173 deputados de nove partidos. O grupo, agora, passa a ser a maior força política da Casa e consolida a influência do deputado alagoano. O segundo maior bloco também reúne partidos de centro e supera com folga as bancadas do PL de Jair Bolsonaro e do PT de Lula. Ambos os blocos querem ser contemplados com cargos e verbas para votar com Lula. A queixa é de que na mesa de negociação há muita promessa e pouca benesse. Mais do que almoços prolongados, questões de saúde ou articulações de última hora, o que impede a formação da base governista é a insatisfação generalizada com a articulação política. Não faltam críticas ao ministro Alexandre Padilha. Apesar da promessa do Planalto de entregar cerca de 50 bilhões de reais nas mãos dos congressistas, impera, segundo deputados e senadores, a demora na liberação de cargos no segundo e terceiro escalões e da dinheirama para investimento nas bases eleitorais.
A lentidão é tamanha que os congressistas passaram a fazer troça com a espera. Um parlamentar que levou a Padilha uma série de pleitos no início do mês ouviu do ministro, mais uma vez, que elas seriam destravadas em breve. “Mas não vão, né? Eu saí muito decepcionado com o ‘enrolation’. É ‘enrolation’ mesmo”, disse. Outro parlamentar já compara a situação a um processo seletivo. “Eles pegam o deputado novato, abrem o sistema para se cadastrar, e ele o faz todo feliz, naquela energia de uma inscrição para o Big Brother. A turma se inscreve achando que vai dar alguma coisa, mas não dá em nada. O povo mais tarimbado sabe que estão enrolando”, afirma um líder partidário. A grita acontece até mesmo dentro do PT. Na última segunda-feira, 10, um grupo que integra a executiva da legenda, da qual fazem parte nomes como Gleisi Hoffmann, Jilmar Tatto e José Guimarães, se reuniu para fazer um balanço sobre o governo e o partido. No encontro, sobraram críticas sobre como Padilha vem falhando ao segurar as emendas e ao fazer acordos “no varejo”, sem conseguir amarrar o apoio das cúpulas partidárias.
Além disso, os próprios petistas relatam dificuldades em encaminhar os pedidos ao ministro. “Uma insatisfação que acontece em um momento se resolve logo, mas uma insatisfação que é repetida com a expectativa de que vai ser resolvida, e não é, gera uma confusão maior. Está-se criando um desgaste desnecessário”, diz um petista que participou do encontro. Os problemas já subiram para o primeiro escalão. Na última semana, a ministra do Turismo, Daniela Carneiro, pediu a desfiliação do União Brasil alegando divergências internas. A questão é que o partido, que detém três pastas na Esplanada e já ameaça as votações do governo se não tiver mais espaço, não abre mão da cadeira e anunciou que quer a demissão da ministra caso seja confirmada a saída dela da sigla. Enquanto o governo bate cabeça, a oposição articulou a ida em série de ministros para prestar esclarecimentos ao Congresso. Flávio Dino, da Justiça, teve de encarar pela segunda vez uma barulhenta tropa oposicionista, foi embora sem conseguir dar as explicações e ouviu o recado de que será chamado à Câmara novamente.
À frente das negociações, Padilha enfrenta as mesmas agruras de seus antecessores no cargo. O articulador político do governo, de qualquer governo, pode até costurar acordos, mas esses só são consumados se o presidente da República bater o martelo. No primeiro mandato de Lula, José Dirceu tentou montar uma base de apoio com legendas de centro, mas o chefe preferiu um arco mais amplo, com o PL de Valdemar Costa Neto e o PP. O resto da história é conhecido. Na gestão passada, Bolsonaro, diante da dificuldade para criar sua base, cedeu poder ao Congresso com as chamadas emendas de relator. Empoderados, deputados e senadores não querem abrir mão do que conquistaram e exigem o controle de fatias generosas do Orçamento da União. Enquanto não são agraciados, dificultam até mesmo ritos burocráticos, como se viu no caso das comissões. Fizeram isso como um sinal de alerta, mas, nos bastidores, alegam que podem recorrer a remédios mais amargos. A ameaça é de que, se as verbas orçamentárias não voltarem a fluir, a Câmara vai impor derrotas ao governo durante a votação de matérias importantes. Lula 3, definitivamente, não terá vida fácil no Congresso.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837