Privatização do Porto de Santos vira primeiro embate entre Lula e Tarcísio
Marcha a ré no processo de concessão do terminal opõe o petista e o governador paulista logo depois da posse
Governadores eleitos, mesmo que de oposição, sempre tentam colocar os interesses dos seus estados acima de questões ideológicas e manter uma relação amistosa com o presidente da República. Ao assumir o Palácio dos Bandeirantes, Tarcísio de Freitas (Republicanos), apadrinhado e ex-ministro de Jair Bolsonaro, manteve a escrita e disse que os paulistas e o Brasil precisam caminhar juntos. Na prática, porém, já surgiu a primeira grande discórdia política que colocam os dois lados em confronto direto. Maior do país e da América Latina, o Complexo Portuário de Santos estava na lista de prioridades de privatizações da gestão Bolsonaro, mas o processo não foi concluído a tempo e, agora, o novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, já deu ordens para brecar de vez a história. Tarcísio, que enquanto ministro deu início à tentativa de desestatização, promete, agora como governador, brigar com o Palácio do Planalto para manter a ideia, mesmo ciente de que Lula será contrário a privatizações (veja a reportagem na pág. 22).
Necessária à modernização do terminal de Santos, a iniciativa gestada nos tempos de ministério de Tarcísio consiste em transferir a autoridade sobre o local e a administração portuária para a iniciativa privada, que ficaria responsável por gerir o entra e sai de navios e pela manutenção de seus 7,8 quilômetros quadrados de área, que inclui serviços como dragagem do canal, segurança, vigilância e limpeza.
Em troca do direito de cuidar do porto, a empresa vencedora pagaria uma outorga de 20 bilhões de reais, da qual parte seria destinada à construção de uma passagem seca entre as cidades de Santos e Guarujá, além de melhorias urbanísticas e de logística nos três municípios (há também Cubatão) que têm parte de seus territórios dentro do porto. “Não desisti da ideia e vou levar os nossos argumentos ao governo federal”, afirmou Tarcísio. O governador já se movimenta para tratar do caso diretamente com Lula e Márcio França, ministro dos Portos e Aeroportos. O advogado Vicente Santini (ligado a Bolsonaro) está escalado para atuar no escritório de Representação do Estado de São Paulo em Brasília, tendo como prioridade a resolução do imbróglio.
Uma das esperanças do Palácio dos Bandeirantes é que França, um político com perfil conciliador, consiga fazer uma boa mediação do caso junto ao Palácio do Planalto. Quando ocupou por oito meses o cargo de governador de São Paulo, França privatizou a Companhia Energética de São Paulo (Cesp) e comemorou a arrecadação de 1,9 bilhão de reais. Na época, também se mostrou favorável à concessão de aeroportos estaduais paulistas. Agora, como subordinado de Lula, França equilibra-se na balança: tem ordens para brecar a privatização de Santos, mas vem rascunhando uma espécie de solução intermediária.
A ideia do novo ministro é manter a autoridade portuária sob as rédeas do estado e privatizar a administração do local. Assim, a terceirização de serviços e concessão de espaços, como já ocorre com os 65 terminais de carga, poderão ser objeto do novo modelo de desestatização. Quem opera por ali vê com bons olhos a solução. “No mundo todo o que vemos é o governo sendo dono da terra e arrendando os serviços e as áreas para o privado”, afirma Angelino Caputo, presidente da Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados, entidade que representa 45 terminais do porto. “É bom que a autoridade seja neutra, caso contrário, pode haver conflito de interesse”, completa. Um dos problemas da solução de França é que ainda não está claro se ela garante os mesmos investimentos de 20 bilhões de reais da proposta original de Tarcísio. Além disso, falta a parte mais importante: combinar com Lula. Recém-empossado na Esplanada, França ainda não teve tempo de conversar em profundidade sobre esse assunto com o chefe.
A novela de desestatização do Porto de Santos, que parecia ter chegado ao fim no governo Bolsonaro, arrasta-se há mais de duas décadas. Um dos principais entraves para o negócio deslanchar foram os feudos políticos que sempre dominaram a administração com a indicação de apadrinhados (MDB, PL e PSB estão entre as siglas com maior influência histórica na área). Em setembro do ano passado, finalmente, o governo federal aprovou o plano e enviou a minuta dele para aprovação do Tribunal de Contas da União. Embora o local venha batendo recordes de movimentações de cargas nos últimos anos, os custos altos de operação e os percalços logísticos, como vias vicinais esburacadas, dificultam demais o dia a dia das empresas. É lamentável que o melhor caminho para o Porto de Santos seja ainda objeto de discussões, depois de tanto tempo. Por isso, no atual embate político entre os palácios do Bandeirantes e do Planalto, a torcida é que ambos se entendam e o Brasil saia vencedor.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823