Ambiciosamente batizada de Ad Infinitum, a sexagésima fase da Lava-Jato, deflagrada na terça-feira 19 pela força-tarefa de Curitiba, foi o tiro com o maior potencial de letalidade disparado contra o tucanato em quase cinco anos de investigações. As buscas e apreensões nos endereços do então senador e hoje deputado Aécio Neves e a prisão de Beto Richa, ex-governador do Paraná, alvejado quando liderava a campanha ao Senado, foram mais escandalosas, mas a detenção do engenheiro Paulo Vieira de Souza ilumina um grande esquema que, muito previsivelmente, envolvia empreiteiras e dinheiro público. Conhecido como Paulo Preto (apelido pelo qual não tem muito apreço), o ex-diretor da Dersa, autarquia responsável por obras rodoviárias do governo de São Paulo, já havia sido preso duas vezes pelo braço paulista da Lava-Jato, sob acusação de peculato e desvio de 7,7 milhões de reais na construção do Rodoanel, rodovia que circunda a capital paulista. Desta vez, porém, a prisão foi pedida pelo Ministério Público de Curitiba, berço da Lava-Jato. E diz respeito a atividades cavilosas que o engenheiro manteve a partir de 2010, depois de sair da Dersa, em associação com o já famoso departamento de propina da Odebrecht, pomposamente chamado de Setor de Operações Estruturadas. Paulo Preto terá de explicar aos procuradores e policiais federais de Curitiba a origem de 34 milhões de dólares (mais de 130 milhões de reais, na época) que mantinha até 2017 em contas bancárias na Suíça. A fortuna foi localizada por autoridades daquele país, a pedido dos investigadores brasileiros, que contaram também com a colaboração de autoridades da Espanha, Bahamas e Singapura. Dos extratos constam nome, endereço e data de nascimento do titular das contas.
Figura indefectível das suspeitas de corrupção em São Paulo, Paulo Preto esteve na Dersa durante os governos de Geraldo Alckmin e de José Serra. No meio político, já era apontado como operador financeiro do PSDB anos antes da Lava-Jato. Nunca, porém, as suspeitas tiveram o lastro documental que se exibe agora. No meio da papelada reunida pelos investigadores, encontra-se uma nota que derrubou um membro do governo João Doria. Trata-se de um fax (veja abaixo), datado de 20 de dezembro de 2007, em que um tal Cristiano (responsável por movimentar uma das contas de Paulo Preto) pede a uma funcionária do banco suíço Bordier que providencie a entrega de um cartão de débito a Aloysio Nunes Ferreira, na época chefe da Casa Civil do governador José Serra. No fax, o tal Cristiano dá outras recomendações: o cartão deveria ser entregue no hotel Majestic, um cinco-estrelas de Barcelona, entre os dias 24 e 29 de dezembro, período em que Aloysio Nunes ficaria hospedado lá. O ideal, porém, seria que a entrega ocorresse na véspera do Natal.
Antes de entrar no governo estadual, Paulo Preto trabalhou em duas campanhas de Nunes para deputado federal, em 1994 e 1998. Em 1999, quando Nunes assumiu a Secretaria-Geral da Presidência no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o engenheiro foi um de seus assessores. No dia da operação, Nunes participava de uma palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, na condição de presidente da Investe SP, agência voltada a atrair investimentos para o estado, cargo que assumiu em janeiro, a convite de Doria. Foi durante o evento que ele soube da prisão do amigo (e também que seus endereços estavam sendo vasculhados pela Polícia Federal). Abordado pela imprensa, Nunes negou ter recebido qualquer cartão de compras. “Estou em busca do que existe nesse inquérito”, declarou. No mesmo dia, deixou o governo. Oficialmente, saiu por iniciativa própria, mas sabe-se que Doria considerou sua situação insustentável. O governador já estava escaldado com o caso de Gilberto Kassab, indicado para a Casa Civil mas desde então “em licença por prazo indeterminado”, enquanto se defende no processo em que é acusado de receber 58 milhões de reais do grupo J&F.
A nova fase da Lava-Jato segue a pista de delatores da Odebrecht que mencionaram Paulo Preto. Segundo Adir Assad, um dos principais operadores do propinoduto da empreiteira, Paulo Preto não atuou apenas em prol do PSDB. Também contribuiu para o esquema de contabilidade paralela da Odebrecht. Em 2010, forneceu algo entre 100 e 110 milhões de reais em espécie ao departamento de propinas da empresa. Naquele ano de eleições, a demanda por dinheiro vivo era tanta que os operadores não estavam dando conta do recado. Foi aí que Assad recorreu a Paulo Preto, amigo de maratonas e de provas de Ironman desde o fim dos anos 1980. Assad sabia que o companheiro de corridas armazenava uma grande quantidade de dinheiro vivo — parte da qual foi paga pelo próprio Assad, a título de propina de empreiteiras que tinham contratos com a Dersa. Assad sabia também que Paulo Preto queria se livrar da montanha de reais em espécie, que ele guardava em dois imóveis (era o dobro do montante encontrado no bunker do ex-ministro Geddel Vieira Lima, cujos 51 milhões de reais foram apreendidos em um apartamento em Salvador). Foi aí que Assad, codinome “Esfiha” nas planilhas da Odebrecht, propôs uma operação casada: Paulo Preto entregaria o dinheiro para a Odebrecht honrar seus compromissos em reais no Brasil, enquanto o Setor de Operações Estruturadas lhe pagaria em dólares, em contas no exterior. Os pagamentos fora do país foram realizados por um terceiro operador, Rodrigo Tacla Duran, radicado na Espanha, que recebia uma comissão para repassar os montantes, via empresas offshore. Tacla Duran, que recusou a delação premiada, é considerado foragido pela Justiça brasileira, mas já admitiu às autoridades espanholas que movimentou valores para a Odebrecht em contas bancárias de suas empresas na Espanha e em Singapura. Assad contou aos investigadores que ele próprio chegou a retirar parte do dinheiro dos bunkers de Paulo Preto, carregando quinze malas de viagem, com 1,5 milhão de reais cada uma, em um utilitário. Detalhe mais pitoresco do escândalo: funcionários de Assad viram Paulo Preto espalhando maços de dinheiro pelo apartamento, para que as notas tomassem sol e não embolorassem por causa da umidade.
As informações de Assad já foram, em grande parte, confirmadas pela força-tarefa no sistema informatizado da Odebrecht, que registrava a contabilidade paralela da empresa. Mas o trabalho foi além. Os investigadores descobriram como Paulo Preto tentou proteger os 34 milhões de dólares que mantinha em bancos suíços no início de 2017. Em janeiro, ele juntou todos os recursos em uma única conta. Em fevereiro, enviou 17 milhões de dólares a uma conta nas Bahamas. Em março, mandou os 17 milhões restantes para o mesmo paraíso fiscal. O movimento foi uma tentativa de tirar a fortuna do alcance das autoridades suíças, que colaboravam com a Justiça brasileira. Suspeita-se de mais recursos espúrios escondidos mundo afora. “Sabemos que saiu muito dinheiro das contas dele para a China e Hong Kong, que ainda não conseguimos rastrear”, diz o procurador Roberson Pozzobon, do MPF do Paraná. Também não há clareza sobre a origem exata do dinheiro vivo que o investigado mantinha. Seria tudo dele, ou Paulo Preto guardava o dinheiro sujo de outra pessoa?
Nas duas prisões anteriores, em abril e maio do ano passado, o ex-presidente da Dersa foi libertado por habeas-corpus do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Agora, como o caso está sob a jurisdição curitibana, o juiz natural não será mais Mendes, mas Edson Fachin, fato que foi comemorado por agentes e procuradores da Lava-Jato. Paulo Preto foi acusado até de ameaçar uma funcionária da Dersa que resolveu colaborar com a Justiça. Parece que ele tem mesmo muito a esconder. Segundo noticiou o jornal Valor Econômico, o Ministério Público da Suíça comunicou à Justiça brasileira que Paulo Preto teria desembolsado “comissões ocultas” a pessoas vinculadas ao PCC. Há ainda muito a investigar. ƒ
Com reportagem de Edoardo Ghirotto
O direito ameaçado
Ações como a Ad Infinitum — sexagésima fase da Operação Lava-Jato, que parece estar mesmo se prolongando ao infinito — vêm passando o Brasil a limpo, devassando ecumenicamente corruptos dos mais variados partidos. É preciso cautela, no entanto, para que o afã justiceiro não atropele garantias legais — como o direito à defesa e a liberdade de ação dos advogados que o asseguram. Uma ordem do juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Criminal de Brasília, causou indignação no meio legal brasileiro por abrir a porta para intimidação da defesa. Oliveira determinou a quebra do sigilo bancário do escritório de Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, um dos mais reputados criminalistas do país.
O juiz acatou, em 15 de janeiro, um pedido do Ministério Público Federal. Os investigadores da Operação Cui Bono tentam obter provas de que o ex-presidente Michel Temer autorizou a compra do silêncio de duas testemunhas, o ex-deputado Eduardo Cunha e o doleiro Lúcio Funaro. Mariz foi advogado de Temer até 29 de dezembro do ano passado, e de Funaro até junho de 2016. Deixou a defesa do ex-presidente justamente para evitar conflito de interesse no processo.
Não se sabe que suspeita terá levado o juiz a tomar essa medida, já que o processo corre sob segredo. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Mariz lembrou que devolveu 300 000 reais de honorários que Funaro lhe havia pago — talvez esse montante tenha sido interpretado como algum pagamento irregular.
A quebra do sigilo levantou furor no mundo jurídico porque a inviolabilidade dos escritórios de advocacia é consagrada por lei. Mais de 1 300 profissionais da classe se uniram em um abaixo-assinado contra o que consideram “uma das maiores afrontas ao direito de defesa experimentadas desde a redemocratização do Brasil”. A Ordem dos Advogados do Brasil classificou a decisão como “odiosa”.
Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623
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