Nas últimas semanas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) esteve no centro do palco político — e deve continuar lá por mais um bom tempo. Vencida a barulhenta questão do voto impresso, o órgão agora se prepara para finalizar os processos que pedem a cassação do mandato do presidente Jair Bolsonaro, a partir de denúncias de supostas irregularidades na campanha do então candidato do PSL em 2018. Pela tradição da Corte, o desfecho das ações parecia absolutamente previsível: o arquivamento. Mas há algumas novidades que, juntas, dificultam os prognósticos. A principal delas é que, em outubro, o ministro Mauro Campbell assume o comando da Corregedoria-Geral do tribunal e, por consequência, a relatoria dos casos. Indicado ao Superior Tribunal de Justiça pelo ex-presidente Lula, ele também vai herdar o polêmico inquérito administrativo que investiga os ataques de Bolsonaro ao sistema eletrônico de votação — e que pode, em um cenário extremo, levar à inelegibilidade do presidente da República em 2022.
As campanhas presidenciais sempre foram alvo de questionamentos legais, oriundos, na maioria das vezes, de candidatos ou partidos derrotados. Fernando Collor foi acusado de crime eleitoral. O tucano Fernando Henrique respondeu a processos por uso da máquina administrativa. Lula foi apontado como beneficiário de caixa dois. Dilma Rousseff teria recebido dinheiro ilegal de empreiteiras. Todos os processos acabaram arquivados. Os casos envolvendo Jair Bolsonaro provavelmente teriam o mesmo destino. O tribunal já encerrou onze de um total de quinze ações impetradas contra a chapa do presidente da República. O tal inquérito administrativo, porém, é algo inédito. No início do mês, Luis Felipe Salomão, o atual corregedor, decidiu abrir o procedimento para investigar os ataques do presidente contra o sistema de votação. Em uma live, Bolsonaro levantou suspeitas sobre as urnas eletrônicas e prometeu apresentar provas de que o sistema poderia ser fraudado. As provas, por óbvio, não apareceram. Por causa disso, o TSE enviou ao Supremo Tribunal Federal também uma notícia-crime contra o presidente. No pedido, o chefe da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, solicitou que o caso fosse apurado dentro do chamado inquérito das fake news, o que fez o presidente da República disparar uma bateria de acusações e impropérios contra o ministro.
Em princípio, a ascensão de Mauro Campbell em meio a esse tensionamento não deve alterar o desfecho previsto para o caso. Isso não significa que o presidente conquistará imunidade para continuar a promover ataques contra o tribunal. Magistrados consultados por VEJA avaliam que, mesmo com a troca de guarda na corregedoria, a Corte se manterá unida contra a verborragia presidencial. O presidente do TSE chegou a ouvir de colegas que Bolsonaro precisava ser contido e que ele estava ampliando seus ataques diante da posição retraída do Judiciário. Era necessário reagir. O inquérito administrativo foi concebido para servir como arma de defesa do tribunal, uma bomba de alto poder de destruição que permanecerá armada de agora em diante.
Com 21 anos de carreira no Ministério Público amazonense, Mauro Campbell vai cuidar da bomba e do acervo de processos ainda ativos contra o presidente. Luis Salomão tinha a intenção de julgar em 2020 as ações consideradas mais robustas, as que acusam a campanha de Bolsonaro de ter se utilizado de disparo ilegal de mensagens, o que poderia ser configurado como abuso de poder econômico e uso indevido de meios de comunicação. O prazo, no entanto, acabou não sendo cumprido. O ministro Alexandre de Moraes pediu ao corregedor que as ações ficassem em “banho-maria”, enquanto avançavam as investigações que ele conduz no STF sobre a disseminação de fake news. Tempos depois, Salomão e Moraes se reuniram a sós para discutir se existiam evidências suficientes contra a chapa — e novamente optaram por manter o processo estacionado. “Deixar o caso em aberto é uma espada na cabeça do presidente, uma malícia política”, resumiu um interlocutor dos dois ministros.
Discreto, o futuro corregedor teve passagens por cargos políticos no Amazonas — foi secretário estadual por três vezes — e em 2007 chegou a tornar-se alvo de um plano de assassinato quando concorreu ao cargo de chefe do Ministério Público estadual. Longe dos holofotes no STJ, Campbell defende o Judiciário como “apaziguador de ânimos” e em julgamentos é conhecido por impor penas mais brandas aos condenados. Isso nem de longe significa contemporizar com eventuais desmandos. Em um dos mais polêmicos casos julgados recentemente, o TSE discutiu os limites da liberdade de expressão e condenou por propaganda eleitoral antecipada um homem que publicou no Instagram um vídeo com ataques a Flávio Dino (PSB), governador do Maranhão. Nas imagens divulgadas, Dino era caracterizado como nazista, acompanhado da expressão “Fora, ladrão”. “Estamos aqui a enfrentar uma situação de discurso de ódio intolerável pela Justiça Eleitoral”, repudiou Campbell em seu voto. O precedente, em tese, abriria brecha para o tribunal punir, por exemplo, quem chamar o presidente de “fascista”, “genocida” ou coisa pior, mas também pode ser usado contra o próprio Bolsonaro, caso ele insista no discurso inoportuno, ofensivo e desatinado contra o TSE e seus ministros. O novo corregedor não gosta de confusão.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752