Está de volta ao debate público uma questão: a Polícia Federal deve ou não ter autonomia plena, que vem sempre acompanhada dos adequados mecanismos de controle? De um lado, seus integrantes lutam pela autonomia, com o apoio de boa parte da opinião pública. E, de outro, políticos, Ministério Público e Judiciário defendem controles mais eficazes. Nos termos em que se desenvolve a discussão, ela é recorrente, polarizada e parcial, dado que a Polícia Judiciária Federal já é autônoma, de fato, ao longo do ciclo de atividades do processo penal; porém, com um controle externo frágil.
Ancorada constitucionalmente no Executivo, noves fora quando age como polícia administrativa, a PF tem um status único, pois sai integralmente da tutela do Ministério da Justiça e Segurança Pública e passa ao Judiciário quando por este requisitada.
Vamos a um exemplo pessoal. Em 8 de julho de 2018, um domingo, deu-se o vai e vem do prende e solta do ex-presidente Lula, decorrente de um conflito de competências entre desembargadores do TRF4. Para me informar a respeito, liguei para o presidente do tribunal, desembargador Thompson Flores, que me pediu que solicitasse ao superintendente da PF no Paraná que não agisse até ter em mãos a decisão final. Declinei, de imediato, pois se assim o fizesse poderia ser acusado de obstrução de Justiça e prevaricação, e pedi a ele que ligasse pessoalmente para o delegado Maurício Valeixo, então o chefe da PF no Estado do Paraná.
Em termos mais abrangentes, nenhuma autoridade da República pode interferir nas ações e atividades da PF em uma investigação ou inquérito, à exceção do juiz que o preside ou do Ministério Público — esse último desde que tenha sua petição acatada pelo primeiro. Nesse quadro, ao Executivo, via ministério, restam a supervisão finalística, isto é, a aferição da conformidade da PF com a lei, e a tomada de decisão quanto ao seu orçamento e organização funcional. Logo, para tudo o mais que impacta a sociedade em matéria penal, a PF é rigorosamente autônoma.
Na realidade, a questão é outra. Ou melhor, encontra-se em outro lugar. Quem pede a autonomia pede que seja dado à PF o poder de se auto-organizar e de decidir quanto ao seu orçamento e sua alocação.
A razão dessas duas propostas seria blindar a polícia contra pressões e desvios de ordem política, movidos por interesses dos investigados, sejam pessoas físicas, sejam jurídicas, riscos que cumpre evitar. Contra tal autonomia, levantam-se objeções crispadas do Ministério Público, do sistema político e do Judiciário, sendo as principais alegações as de que a autonomia atingiria o estado democrático de direito e a PF se tornaria independente, o que representaria uma ameaça aos direitos humanos. Passando à análise das objeções, não haveria risco de a autonomia ferir o estado democrático de direito, pelo fato de que o controle externo continuaria a existir, e poderia ser aperfeiçoado, como se verá adiante. Em segundo lugar, é desinformação ou má-fé equiparar a autonomia com independência administrativa, dado que são coisas diversas.
Por fim, e pelas razões anteriores, inexistem motivos ou razões para que a autonomia venha a ameaçar os direitos humanos. Ao contrário do que pensam os críticos da autonomia — que, repetimos, já existe de fato na atividade policial que realmente importa aqui, a de investigação dos delitos penais —, o problema reside na dupla relação da PF com o Executivo e no falho controle externo a que é submetida. Noutros termos, a questão é de autonomia, mas também de controles.
Recorro a mais um exemplo pessoal. No ano passado, quando encerrava seu mandato à frente do controle externo das polícias no MPF, o subprocurador responsável pediu-me uma audiência para se despedir. Ao atender a meu pedido para que fizesse um breve balanço do seu período, ele foi amargo. Discorreu sobre a dificuldade de exercer suas funções em face do Conselho Superior de Polícia da PF, que baixara resoluções para impedir a coleta de dados e informações necessárias a um controle externo efetivo. Esse diagnóstico é expressão de um contencioso mais amplo e histórico sobre a extensão do controle externo pelo MPF, ao qual a PF reage, inclusive por via judicial. Aliás, é necessário lembrar que nem na Constituição nem na Lei Complementar 75 existe uma definição inequívoca do que seja controle externo, se ele seria apenas finalístico ou integral.
Nenhuma autoridade pode interferir numa investigação ou inquérito, à exceção do juiz e do Ministério Público
Ao MPF faltam recursos e pessoal para fazer um controle externo eficiente e às polícias sobra disposição corporativa para resistir a esse mesmo controle. Essa situação fica clara quando se têm em mãos os relatórios de controle externo da Procuradoria. Eles são um catálogo das condições físicas e de equipamentos das polícias, com algumas análises críticas e sugestões.
Entendo que só haverá controle real da PF se lhe for concedida a autonomia de direito. Isso porque, se a alternativa for regredir ao passado, a um amplo controle por parte do Executivo via Ministério da Justiça e da Segurança Pública, todas as etapas pré-processuais da investigação e do inquérito correm o risco de ser contaminadas politicamente, o que é inadmissível.
A solução correta é a concessão da autonomia, combinada com a reestruturação dos controles, por meio de um conselho de supervisão e controle, integrado por membros do Judiciário, do Ministério Público e pelo corregedor da PF. Esse último, assim como o diretor-geral, teria mandato fixo e ambos seriam indicados pelo Executivo e submetidos a aprovação pelo Senado, mediante sabatina. O mandato dos dois, diretor-geral e corregedor, lhes conferiria a necessária independência para dentro, diante da corporação, e para fora, em face dos interesses e pressões externas. Adicionalmente, e para evitar a “politização reversa”, aqueles que decidissem migrar para a política eleitoral deveriam se desligar em definitivo dos quadros da PF, com pelo menos seis meses de antecedência do pleito. Para tanto, seria preciso emendar a Constituição nos artigos 144 e 129, aquele para instituir a autonomia por lei complementar e este para ampliar o escopo do controle externo da PF.
A Polícia Federal é uma das melhores polícias judiciárias do mundo, possui um mandato constitucional essencial para o estado democrático de direito e a Justiça. Tem pessoal altamente qualificado, dispõe de recursos tecnológicos e conta com uma cultura meritocrática e republicana sólida. Para seguir uma rota de aperfeiçoamento, necessita conquistar sua autonomia funcional, administrativa e orçamentária, submetida a um sistema de supervisão e controle que assegure ao Estado e à sociedade sua conformidade com a lei e a punição de eventuais desvios.
Não será fácil mudar em um cenário minado por resistências diversas e temores de políticos, Judiciário, MPF e da própria Polícia Federal. Mas, a permanecer o atual estado de coisas, estacionaremos no pior dos mundos: uma autonomia incompleta que infunde suspeita, agravada por controles ineficazes e precários.
* Raul Jungmann foi ministro do Desenvolvimento Agrário, da Defesa e da Segurança Pública
Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651