Dois dias depois de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proclamar o resultado do segundo turno, Jair Bolsonaro ainda hesitava em reconhecer a derrota. A demora gerou uma infinidade de boatos que serviram para alimentar os protestos dos caminhoneiros nas principais rodovias do país. No Palácio da Alvorada, o presidente não sabia sequer como reagir. Ministros, como Paulo Guedes, da Economia, e Ciro Nogueira, da Casa Civil, recomendavam que ele admitisse publicamente a vitória do adversário e anunciasse o início do processo de transição. Isso ajudaria a debelar os protestos que já apresentavam sinais de descontrole e desabastecimento em algumas cidades. Os auxiliares ponderaram que o silêncio, além de alimentar boatos e teorias, estava sendo interpretado pelos manifestantes como sinal de apoio — e estava mesmo. Aparentemente convencido, embora nada convicto, o ex-capitão começou a preparar a primeira versão do pronunciamento, mas não concluiu, interrompido pelo deputado Eduardo Bolsonaro.
O filho Zero Três do presidente achava que o pai deveria se manter em silêncio. Não havia necessidade de reconhecer o resultado de imediato, nem de anunciar a transição. Afinal, segundo ele, ainda pairavam muitas dúvidas sobre a legitimidade do processo e as Forças Armadas ainda não haviam divulgado as conclusões da auditoria nas urnas. Após as ponderações do deputado, o presidente decidiu que o impasse seria resolvido democraticamente. Pediu então que levantassem a mão os ministros que concordavam com o pronunciamento. Todos se manifestaram a favor, incluindo os militares. “Quero deixar claro que quem decide sou eu”, disse o presidente, antes de deixar a sala. O que aconteceu na sequência é sabido. Bolsonaro optou por um meio-termo. Leu uma nota curta agradecendo os votos que recebeu, fez críticas indiretas ao TSE e delegou ao chefe da Casa Civil falar sobre a transição. Em relação aos caminhoneiros, disse que manifestações eram bem-vindas, desde que não prejudicassem o direito de ir e vir. Depois, imergiu, continuando a alimentar boatos e teorias.
Sete dias depois da fala do presidente, na terça-feira passada, um grupo de aproximadamente 400 pessoas continuava acampado em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, dando sequência à manifestação que havia começado poucas horas depois que a derrota de Bolsonaro foi oficialmente confirmada. Até um lunático ficaria chocado com o que se passou — e ainda se passa — por lá. O ambiente descontraído contrastava com a gravidade das “notícias” que pipocam a todo instante. A última dava conta de que na manhã seguinte o Exército finalmente tornaria público o conteúdo do relatório de auditoria sobre as urnas eletrônicas. A conclusão, claro, confirmaria o que todos ali já estavam cansados de saber: Bolsonaro perdeu a eleição porque houve fraude. A investigação militar, a propósito, conferiria autenticidade a uma “reportagem bombástica” que havia provocado o maior alvoroço entre os manifestantes durante todo o fim de semana.
A tal “reportagem”, na verdade uma live conduzida por um “consultor” argentino, apresentou documentos que provariam que as urnas foram manipuladas para prejudicar Jair Bolsonaro e beneficiar Lula no segundo turno. As “revelações” feitas na Argentina comprovadas pelo relatório dos militares não deixariam outra alternativa senão a imediata anulação das eleições e a intervenção das Forças Armadas para colocar as coisas em seus devidos lugares. Em linhas gerais, é nessa sandice que os manifestantes acreditam. Difundidas de forma exponencial em comunidades de troca de mensagens, as teorias de que a disputa nas urnas foi violada formaram nos últimos dias um importante elemento de coesão entre os apoiadores do presidente, que terminariam a quarta-feira 9 ainda mais convictos de que algo estava errado. O relatório do Ministério da Defesa apresentado à Justiça Eleitoral afirmou que não conseguiu comprovar qualquer fraude, mas tampouco garantiu que o sistema de votação seja absolutamente seguro. A simples falta de um atestado de que as urnas eletrônicas são invioláveis, embora desde que entraram em funcionamento no país, em 1996, não tenha havido uma mísera falha sequer, bastou para disparar o gatilho daquilo que especialistas classificam como “absurdo estratégico”.
Por essa teoria, propaga-se uma história de que entes poderosos escondem algum plano maligno de tomada do poder e dá-se ao cidadão comum a missão, em nome do bem, de desmascarar a suposta conspirata. A fraude nas eleições patrocinada pelos ministros do TSE ou a ameaça comunista que representa a eleição de Lula, por exemplo. O discurso não precisa ter necessariamente qualquer nexo com o mundo real, como mostrou a publicação dos vídeos do “consultor” argentino, logo retirados do ar pela Justiça Eleitoral. Para dar certo, basta que a mensagem capture os sentimentos dos seguidores e mantenha-os na mesma vibração. “Isso vale para o Jim Jones, o líder da seita que pregava o suicídio em massa nos anos de 1970, e também para políticos como Jair Bolsonaro, que adotam propositadamente uma ambiguidade no discurso para que sejam produzidas narrativas propícias a manter a radicalização acesa”, afirma o cientista comportamental Hamilton Carvalho. Um parêntese: o autor das “denúncias” em vídeo que incendiaram os manifestantes à beira dos quartéis é Fernando Cerimedo, dono canal La Derecha Diario, amigo do deputado Eduardo Bolsonaro.
O absurdo estratégico não foi criado sob o governo de Jair Bolsonaro, embora tenha ganhado tração nas mãos do atual mandatário, que maneja como poucos uma exitosa cartilha criada por apoiadores do ex-presidente americano Donald Trump. “As teorias conspiratórias que alimentam os apoiadores tanto de Bolsonaro como de Trump precisam de combustível inflamável, como duvidar do resultado das urnas ou alegar fraude, e de alguém que fique jogando fogo para manter as labaredas do movimento”, diz a antropóloga Isabela Kalil, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, estudiosa das redes bolsonaristas. “O relatório das Forças Armadas sobre as urnas, por exemplo, não mostra fraudes, mas é possível que interpretem que há ali códigos e mensagens subliminares que só os patriotas entendem”, explica. E assim ativa-se o círculo vicioso, alimentando teorias imaginárias e criando uma realidade paralela que, às vezes, é capaz de confundir até mentes mais privilegiadas. Caso do ex-secretário da Receita Marcos Cintra, que teve suas contas nas redes sociais bloqueadas por determinação judicial depois de replicar as suspeitas do tal ativista argentino.
Desde que foi derrotado, Jair Bolsonaro protagonizou uma sucessão de silêncios. Depois do pronunciamento em que agradeceu os mais de 58 milhões de votos — e não reconheceu abertamente a vitória do adversário nas urnas —, o presidente não participou de nenhuma solenidade do governo, não discursou a apoiadores que batem ponto em frente ao Palácio da Alvorada e não deu as caras na tradicional live das quintas-feiras, onde, por quase quatro anos, defendeu o mandato e atacou inimigos de turno. A ausência de aparições públicas foi substituída por quatro postagens nas redes sociais. Na primeira, imaginada, dizem, para se assemelhar visualmente aos pronunciamentos de guerra do presidente Volodymyr Zelensky, Bolsonaro, de manga de camisa como o colega ucraniano, pediu aos caminhoneiros que desobstruíssem as rodovias. Nos demais posts, nenhuma palavra: apenas imagens dele próprio, com a bandeira nacional em destaque, ladeado por apoiadores. Houve quem interpretasse isso como sinal de que o presidente não daria nenhuma ordem explícita, mas que contava com a rebelião dos apoiadores. Houve quem nas mensagens enxergasse até pedido de socorro. Ao solicitar aos caminhoneiros que liberassem as pistas, Bolsonaro escreveu “desosbtruam”, o que não teria sido um erro de digitação, mas um velado S.O.S.
No fim da semana, de volta ao Q.G. do Exército, os manifestantes, num contingente já bem menor do que no início do movimento, continuavam empenhados em sua missão. O documento das Forças Armadas, lido como um relato de como a Justiça Eleitoral impediu que os militares auditassem a fundo as urnas, revigorou o ânimo em uma semana cheia de frustrações, como a descoberta de que o presidente eleito Lula não morreu nem esteve internado na UTI de um hospital — “infelizmente” não era verdade, chegou a lamentar, de forma absolutamente infeliz, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional do Planalto, general Augusto Heleno — e que o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, continuava solto. No mesmo dia, circulou entre os manifestantes outra daquelas “informações bombásticas”, que correm como rastilho de pólvora, capazes de atrair a atenção de todos. Dois ônibus haviam partido de São Paulo em direção a Brasília. Um deles conduzindo integrantes da torcida organizada do Corinthians. O outro, membros da facção criminosa PCC. Juntos, eles invadiriam o Supremo Tribunal Federal. A parte preocupante: os forasteiros estariam usando camisas verde e amarelas, como se fossem militantes bolsonaristas. Seria, na verdade, mais um plano dos comunistas para comprometer a imagem do presidente, vitimizar os ministros do STF e desqualificar o movimento. A notícia fez todo mundo voltar ao estado de alerta, permanecer vigilante, lembrando que o inimigo continua rondando e pode atacar a qualquer momento. Coisa de louco. Uma realidade paralela permanente.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815