A primeira impressão de quem foi ao Centro de Convenções de Brasília acompanhar a segunda Conferência de Ação Política Conservadora (Cpac) é de que o local abrigaria um show, um grande espetáculo. Não era uma percepção totalmente distante da realidade. O clima de micareta começava na aquisição do ingresso com cobrança de taxa de conveniência, continuava na rigorosa revista pessoal, na fila de acesso quilométrica e no aparato que acompanhava o astro e organizador do encontro, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “A fila está maior do que a do auxílio emergencial”, reclamou uma orgulhosa militante bolsonarista ao ser informada da estimativa de quase duas horas de espera para entrar no primeiro dos dois dias do evento, que começou na sexta-feira 3 e reuniu por dia 1 500 apoiadores do presidente da República. A fila foi a última coisa normal que se viu por lá.
A Cpac se considera o maior evento conservador do mundo, foi realizada no Brasil pela primeira vez após a eleição do presidente Bolsonaro e se propõe a traçar estratégias para fazer frente a uma suposta conspiração global para tomada de poder que uniria grandes empresas de tecnologia e ditaduras comunistas. A ameaça, aliás, é iminente. Logo no primeiro dia da conferência descobre-se que, por aqui, a conspirata já está em andamento e conta com o apoio de veículos de imprensa, cientistas e organismos internacionais, que se associaram para inviabilizar o governo Bolsonaro e abrir caminho para a ocupação esquerdista. “Steve Bannon disse que o Brasil é a bola da vez”, revelou o deputado Bolsonaro sobre antevisões que o ex-estrategista-chefe da Casa Branca teria tido sobre o avanço comunista na América Latina. Os participantes compartilharam outros testemunhos.
De uma palestrante cubana naturalizada brasileira, ouviu-se que “o papa é comunista”. De duas convidadas argentinas, acusações de que uma província no norte do país, comandada por esquerdistas, criou campos de concentração para doentes de Covid e de que há execuções de dissidentes contrários ao lockdown. Um venezuelano relatou que o desarmamento no seu país ampliou a insegurança da população e que a fome é usada como arma política pela ditadura comunista de Nicolás Maduro. Nesse momento, o deputado resolveu agregar à mesa sua contribuição: “Recebi outro dia um vídeo de um rapaz que estava desossando um gato para comer”. No camarote VIP e vestida de verde e amarelo, a ex-mulher de Bolsonaro Rogéria Nantes parecia desinteressada e posava para fotos. A primeira-dama Michelle Bolsonaro só marcaria presença no dia seguinte, acompanhando o marido, quando a ex já não ocupava mais a tribuna reservada a convidados.
Em tempos de pandemia, parte dos assentos do auditório do Centro de Convenções foi interditada para manter uma distância segura entre os participantes. Não adiantou. “Como é que eles vão saber?”, questionou um homem, sem máscara, após arrancar a fita que isolava as cadeiras. No palco ou nas conversas durante o intervalo, sucessivas defesas do direito de não usar máscaras, de não se vacinar, de ingerir medicamentos considerados ineficazes — e vários relatos de pessoas que supostamente morreram por efeitos colaterais provocados pelos imunizantes anti-Covid. No segundo dia, Jair Bolsonaro foi ao evento e se comportou literalmente como um animador de auditório: “Quem aqui pegou Covid levanta a mão. Quem tomou hidroxi ou ivermectina levanta a mão”. Diante da constatação de que a maioria havia levantado a mão em ambas as situações, o presidente concluiu: “Tá aqui a prova. Por que ficarmos apenas focados na vacina?”.
Neste ano, a versão made in Brazil tinha como atração internacional a presença do empresário e primogênito do ex-presidente americano Donald Trump, Donald Trump Jr., que cancelou de última hora sua vinda ao país. Por videoconferência, ele reforçou a teoria de que os brasileiros estão na mira da China para serem transformados em um governo socialista já em 2022 e advertiu: “Se você acha que eles não estão fazendo o que puderem para instalar um governo socialista que eles possam manipular, alguém que acredita e pensa como eles, ao contrário de alguém que ama a liberdade, se você acha que eles não têm planos para a alternativa no ano que vem, então você não está prestando atenção”. Havia tradução simultânea.
A conferência também serviu como teste de popularidade para bolsonaristas que pensam em se arriscar nas eleições “fraudadas” do ano que vem. Passou pelo evento o pouco cativante ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, que desfiou números sobre concessões de obras, enquanto alguns militantes cochilavam. Na sua vez de falar, o ex-ministro Ricardo Salles discorria sobre índios e transgênicos quando, de repente, viu parte da plateia abandonar o auditório para fotografar a chegada de um ex-Big Brother. Coube ao ex-ministro da Educação Abraham Weintraub a participação mais curiosa. Ele gravou um esquete simulando estar em um futuro não muito distante, em 2040, época em que o Brasil já terá sucumbido ao comunismo e não haverá espaço para partidos políticos ou para personalidades como ele expressarem suas ideias. Do lado de fora do auditório, os stands montados praticamente esgotaram seus estoques de souvenirs, incluindo uma banca que oferecia roupas infantis estampadas com manchas de sangue. Um espetáculo grotesco.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755