Reconstruir um país fraturado será desafio para o próximo presidente
Por que uma das prioridades do vitorioso na votação do dia 30, seja quem for, precisa ser a reunificação do Brasil após campanha mais polarizada da história
Houve um tempo em que as mais apaixonadas discussões políticas costumavam desencadear apenas disparos retóricos contra os adversários nas campanhas. Terminada a contabilização dos votos, os perdedores se entrincheiravam na oposição, aceitando o resultado e dando sequência ao jogo democrático. Eram tempos românticos quando comparados ao que se vê na atualidade. Inédita em níveis de agressividade, a atual batalha pelo Palácio do Planalto contaminou o país com uma mistura tóxica de ódio pessoal e de polarização ideológica, não raro descambando para tiros de verdade, como se viu no último domingo, 23, quando o ex-deputado Roberto Jefferson recebeu a balas e granadas uma equipe da PF encarregada de cumprir contra ele um mandado de prisão expedido por Alexandre de Moraes, ministro do STF e atual presidente do TSE. “Nunca vi nada igual”, diz o ex-presidente Michel Temer, com base na experiência de ter disputado oito eleições (seis para o Congresso e duas como vice na chapa de Dilma Rousseff). “Na minha época, eram registrados alguns atos mais agressivos, mas não havia esse nível de violência”, afirma.
Confira a apuração do resultado do segundo turno das eleições 2022
Além da disputa levada às vias de fato em mais de um episódio trágico da campanha (sinal dos tempos, o papa Francisco chegou a pedir recentemente à Nossa Senhora Aparecida que livre o brasileiro do ódio), nunca se viu também tamanha contestação às autoridades encarregadas de arbitrar as eleições, que vai das críticas à lentidão do TSE no combate à saraiva de fake news e chega até a contestação da lisura do pleito, feita à base de argumentos aloprados a respeito da confiabilidade das urnas eletrônicas. Como reflexo dessa confusão, boa parte dos adeptos de Jair Bolsonaro e de Luiz Inácio Lula da Silva se dedica a desqualificar os adversários, imbuídos do espírito de guerra do bem contra o mal.
Até a proximidade da Copa, tradicional catalisador da união nacional, transformou-se em motivo de divisões. A “amarelinha” virou uniforme do bolsonarismo e o engajamento de Neymar na campanha do presidente atirou o craque no caldeirão de ódio dos petistas. Por essas e outras, a polarização política que conhecemos há alguns anos (PT e PSDB competiam de maneira acirrada desde 1994) extrapolou para a chamada polarização afetiva, que ocorre quando um enxerga o outro como inimigo. “As pessoas acham inaceitável a opção de voto adversária”, afirma o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria. Um levantamento recente da empresa mostrou quanto o fenômeno respinga no campo pessoal: dos 2 000 entrevistados, 41% dos lulistas não queriam ver um filho casado com um bolsonarista, ante 33% do outro lado (veja o quadro).
Diante desse clima, é certo que haverá um rescaldo de ódio e ressentimento pairando sobre o país após o anúncio do resultado. Dentro dessa óptica, a eleição não acaba no dia 30. Um dos pontos centrais para atenuar o clima de “terceiro turno” serão os primeiros passos do vencedor no período de transição e, sobretudo, sua postura no início do governo. O eleito sempre chega embalado pelo poder das urnas para promover o que precisa ser feito, mas, no atual cenário de radicalização, esse período adquire uma relevância ainda maior. Além de sinalizar que precisa governar para todos, o vitorioso deverá entender que encontrará um país estressado, fraturado e que precisa se recompor. “A primeira coisa é um discurso para quem não votou nele, chamando para conversar, dizendo que foi eleito o presidente de todos”, afirma Cristovam Buarque, que foi ministro de Lula. O ex-presidente, a propósito, preocupou-se em fazer sinais nessa direção nos últimos dias, prometendo que, em caso de vitória, não fará um governo do PT, mas do povo brasileiro. “Lula formará uma equipe de governo plural e vai dialogar com todos os setores”, diz José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça de Dilma Rousseff. Mesmo entre as hostes bolsonaristas há a percepção de que, em caso de reeleição, o presidente precisará adotar um comportamento diferente dos últimos anos, quando as atitudes do chefe do Executivo foram os principais geradores de crises institucionais e cristalizaram um estilo de governar rejeitado hoje pela metade da população. “Bolsonaro é capaz, sim, de fazer uma espécie de conciliação do país. Ele poderá trazer para o alinhamento dos nossos projetos aqueles que não são a direita raiz, pois o Brasil precisa ter um arrefecimento dos ânimos para caminhar para a frente”, afirma o ex-ministro Ricardo Salles, que acaba de se eleger deputado federal pelo PL-SP.
A tradicional lua de mel do governo recém-eleito será também fundamental para garantir consensos necessários em questões mais urgentes, como a ginástica orçamentária para manter o auxílio emergencial e a viabilização de reformas importantes, como a tributária. O Centrão, como sempre, terá um peso decisivo na estabilidade. Bolsonaro leva vantagem na configuração da nova legislatura, com um Congresso mais à direita saído das urnas e uma base de apoio já construída ao longo do seu mandato. “O importante é o governo ter clareza das propostas, como foi com a reforma da Previdência. A diferença é que, com a eleição do Bolsonaro, as propostas já estão prontas. O tempo que um governo novo levará para formular essas propostas é o tempo que levará para nós aprovarmos”, defende Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara. Já Lula terá de fazer um esforço maior para governar, mas há campo para avançar. Conhecido pela “flexibilidade”, o Centrão deverá se movimentar no sentido de negociar com o presidente eleito, seja ele qual for — o bloco parlamentar, conhecido pelo apetite por cargos e dinheiro, já apoiou FHC, Lula, Dilma e Temer. “O Congresso é aberto a negociação, o que exige determinação, paciência e firmeza”, diz Henrique Meirelles, que foi presidente do BC no governo Lula e, depois de passar pelo governo tucano em São Paulo, está novamente na base de apoio do ex-presidente.
A reconstrução de um país fraturado, no entanto, não passa apenas pelo entendimento entre Executivo e Legislativo, mas também pelo Supremo Tribunal Federal, o terceiro vértice da Praça dos Três Poderes. A principal corte judiciária do país, da qual se espera um papel moderador no embate entre as instituições, passou a ser combustível do ambiente de radicalização na medida em que foi alçada por um dos lados da guerra ideológica, o bolsonarismo, à condição de adversária política. Nos últimos anos, o Supremo mostrou força para evitar retrocessos e arroubos autoritários, mas passou também a receber críticas justas por causa de decisões polêmicas, como a censura a opiniões veiculadas por alguns veículos de imprensa. “A atuação do Supremo tem sido um pouco trepidante, potencializando-se um objetivo, às vezes, em detrimento do meio”, diz o ex-ministro Marco Aurélio Mello. Tirar o STF do tiroteio político e trazê-lo de volta para uma atuação eminentemente técnica na defesa da Constituição é um movimento necessário, mas de complexa execução nos próximos anos, pelo fato de que o futuro presidente terá a prerrogativa de indicar dois ministros para os lugares de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, que se aposentam. Não é pouca coisa. Se Bolsonaro, que nunca escondeu o seu desejo de mudar o perfil da Corte, vencer a eleição, ele terá chegado a indicar quatro dos onze ministros do STF.
O esforço de apaziguamento da nação depende muito ainda do comportamento de quem for derrotado em 30 de outubro. Será trágica a repetição do período pós-eleição de Dilma, em 2014, quando Aécio Neves (PSDB), logo após o resultado apertado — como promete ser o pleito deste ano —, questionou o resultado da votação, pedindo inclusive a auditoria das urnas. O procedimento não constatou nenhuma irregularidade, mas abriu caminho para um início de mandato maculado pela desconfiança da opinião pública. “A linha foi ultrapassada ali. É como se o vale-tudo ganhasse uma proporção maior”, afirma Renato Meirelles, fundador do instituto de pesquisas Locomotiva. A semente de insatisfação plantada em grande parte do eleitorado naquele momento e o desastre econômico do governo Dilma abriram caminho para as gigantescas manifestações populares pelo impeachment e erodiram de vez a base política do governo.
O tamanho e o papel da oposição também serão determinantes para o futuro do bolsonarismo e do lulismo. Se o ex-presidente, aos 77 anos de idade, for derrotado, estará encerrando sua carreira eleitoral. E é difícil imaginar qual será o futuro da esquerda, uma vez que o ex-presidente se tornou maior que os partidos que o apoiam, inclusive o PT. Não há dentro de um cenário próximo nenhuma outra liderança nacional capaz de ocupar esse espaço. No caso de Bolsonaro ser derrotado, é quase certo que o bolsonarismo sobreviverá nas redes sociais e nos movimentos e ambientes mais radicalizados da política, mas talvez não na representação política institucional. Ao contrário de Trump, que controla o Partido Republicano, um dos polos da arena política dos EUA, Bolsonaro não tem um partido para chamar de “seu”. O PL, comandado por Valdemar Costa Neto, já foi aliado dos governos petistas — assim como outras legendas do Centrão, que são guiadas pelo governismo e pelo instinto de sobrevivência e que já caminharam de mãos dadas com o petismo.
O ambiente de radicalização vivido atualmente pelo país é bastante recente — para ser mais exato, está completando dez anos. A semente começou a ser plantada nas manifestações de junho de 2013, quando milhares saíram ás ruas do país, inicialmente para protestar contra as tarifas de ônibus, mas que rapidamente evoluíram para o discurso do “contra tudo o que está aí”, que deu vazão ao sentimento da antipolítica e tirou do anonimato uma parcela expressiva do eleitorado de direita, que se sentiu à vontade para defender bandeiras que iam da defesa de pautas moralistas a pedidos pela volta da ditadura militar. Os movimentos ganharam corpo com as investigações da Lava-Jato, surgida em 2014, que expôs a podridão dos partidos tradicionais, e desembocou no impeachment de Dilma, que a um só tempo escanteou o petismo, encurralou o PSDB e permitiu a ascensão de Bolsonaro. Muitos dos elementos que incendiaram as ruas há dez anos estão presentes na radicalização atual. Aliado mais à esquerda de Lula, o presidente do PSOL, Juliano Medeiros não acredita ser possível superar a polarização política. “O fenômeno tem a ver com a crise da democracia liberal no mundo todo, é global e não vai desaparecer com a eleição”, acredita.
Nem todos concordam com essa visão mais pessimista. Um dos maiores estudiosos da atualidade sobre democracia, o cientista político americano Brian Klaas, que é ligado à University College de Londres e articulista do jornal The Washington Post, reconhece o momento difícil do Brasil, mas vê uma luz no fim do túnel. “Uma reforma sistêmica para afastar do poder os maus políticos é a única maneira de o país sair dessa confusão no longo prazo”, afirmou ele a VEJA (confira a entrevista). Os primeiros passos nessa direção precisam ser dados pelo vencedor do pleito, em harmonia com a vontade popular, com o novo Congresso e com o Judiciário. Dos escombros da atual batalha é que sairá o futuro do país. O horizonte mais promissor passa necessariamente pelo árduo trabalho de união do Brasil. Mãos à obra, portanto.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813