Desde a sua vitória nas urnas, Lula sabe que não terá vida fácil na relação com o Congresso. Como o PT e seus aliados de esquerda não elegeram maioria na Câmara e no Senado, o presidente precisa negociar o apoio de partidos de centro e de integrantes de legendas alinhadas a Jair Bolsonaro para aprovar projetos prioritários, sobretudo emendas constitucionais. Foi com o objetivo de ampliar a base governista já na largada de seu terceiro mandato que o petista distribuiu três ministérios para cada uma das seguintes legendas: MDB, PSD e União Brasil. Foi por isso também que ele segurou os ímpetos de hegemonia do PT e decidiu que a sigla não lançaria candidatos para concorrer às presidências das duas Casas do Legislativo. Pragmático, Lula embarcou nas campanhas à reeleição do deputado Arthur Lira (PP-AL), antigo aliado de Bolsonaro e expoente do Centrão, e do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), com quem mantém relação cordial, mas distante. A lógica do mandatário era clara: se não dava para o PT conquistar os dois cargos, o governo precisava evitar que eles caíssem nas mãos de oposicionistas ou adversários declarados. Dos males, o menor.
A principal ameaça aos planos de Lula era a eleição para a presidência do Senado. Partido de Bolsonaro, o PL lançou na disputa o senador Rogério Marinho (RN), com o apoio de Republicanos e PP e a expectativa de transformar a Casa no quartel-general da oposição e, ao mesmo tempo, bunker das ofensivas contra ministros do Supremo Tribunal Federal, alguns dos quais acusados por bolsonaristas de favorecer o PT na última corrida presidencial. Até a véspera da eleição, o PL tinha a maior bancada, status que perdeu horas antes da votação para o PSD, a legenda de Rodrigo Pacheco. Candidato à reeleição, Pacheco venceu com 49 votos graças ao empenho direto do Palácio do Planalto. Cinco ministros se licenciaram de seus cargos para reassumir o mandato de senador e ajudar na missão. Já Marinho amealhou 32 votos. O resultado não foi nem vitória apertada nem um passeio e, por isso, dá tranquilidade a Lula, mas também serve de alerta para ele. Um grupo de 32 senadores, como os que escolheram o oposicionista Marinho, é mais do que suficiente para pedir, por exemplo, a criação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), que exige a adesão de 27 parlamentares.
Os governistas tentam minimizar o número de votos em Marinho, lembrando que nem todos que o escolheram farão oposição ao governo. É verdade, da mesma forma que nem todos que aderiram a Pacheco estarão alinhados a Lula. Para aprovar uma emenda constitucional no Senado, são necessários 49 votos, justamente o total obtido pelo presidente reeleito. Nem os petistas mais otimistas garantem que o governo tem esse contingente na Casa. Há, pelo contrário, o entendimento de que Lula terá de negociar de forma permanente para garantir o avanço de projetos prioritários. A tarefa será árdua, mas poderia ser pior caso Marinho saísse vencedor. A família Bolsonaro se empenhou para que isso ocorresse. A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro até foi ao plenário do Senado para tentar cabalar votos. Dos Estados Unidos, o ex-presidente pediu apoio a Marinho por telefone. Nas conversas com parlamentares, Bolsonaro dizia que o senador representava “a única chance de salvação” para colocar as coisas no lugar, o que, nas entrelinhas, era interpretado como uma promessa de impor algum tipo de contenção ao STF. Pela Constituição, cabe ao Senado abrir processos de impeachment contra ministros do Supremo. Em 2021, o próprio Bolsonaro pediu a cassação de Alexandre de Moraes, mas a ação foi rejeitada por Pacheco.
O presidente reeleito do Senado conhece bem os humores e a força dos oposicionistas. Em discurso momentos antes da votação, ele afirmou que há muitos motivos para reclamações em relação ao STF e defendeu que sejam votados projetos para colocar “limites aos poderes”. Citou, entre as medidas que podem ser analisadas, novas regras sobre decisões monocráticas e também sobre o mandato dos ministros do Supremo, que hoje podem permanecer na Corte até atingir os 75 anos. Pacheco repetiu ainda um de seus mantras prediletos, o de que é preciso pacificar o país. Acenar aos derrotados com uma pauta cara a eles pode, em tese, ajudar a desanuviar o ambiente interno da Casa.
Lula tem plena consciência do tamanho do desafio no Congresso. O maior exemplo disso foi a postura adotada na eleição para a presidência da Câmara. Depois de atacar Arthur Lira durante a campanha de 2022, quando o deputado defendeu a reeleição de Bolsonaro, Lula ordenou ao PT que apoiasse a candidatura do deputado alagoano. Fez isso porque sabia que nenhum esquerdista podia vencê-lo. Ao evitar uma derrota numa disputa sem futuro, tentou transformar um político que era adversário até o ano passado num aliado circunstancial. Até aqui, a estratégia parece estar dando certo, e Lula e Lira conversam como dois parceiros. Para o governo, é melhor que a relação continue assim. Pupilo de Eduardo Cunha, o ex-presidente da Câmara que abriu o processo de impeachment contra Dilma Rousseff, Lira conquistou a reeleição com uma votação recorde: 464 votos, ante 21 de Chico Alencar (PSOL) e dezenove de Marcel van Hattem (Novo).
Aliados de Bolsonaro dizem ter gratidão a Lira pela fidelidade que ele manteve ao ex-presidente e à própria bancada, como quando pediu ao ministro Alexandre de Moraes o desbloqueio de redes sociais de parlamentares que haviam atacado as urnas eletrônicas. Após ser reeleito, o deputado disse, referindo-se a todos os poderes, que “é hora de ver cada um no seu quadrado constitucional”. Parlamentares bolsonaristas dizem ter escutado de Lira que ele não vai aderir nem dar vida fácil ao governo Lula e preveem que, logo na largada, deve impor algumas derrotas em plenário como forma de mostrar a sua força. Já o lado governista fala exatamente o contrário. O tempo dirá qual dos lados tem razão, mas é certo que a postura de Lira dependerá de contrapartidas conhecidas do governo, como liberações de verbas e distribuição de cargos.
O presidente reeleito da Câmara já deixou clara sua insatisfação com a nomeação para ministro dos Transportes de Renan Filho, cujo pai, o senador Renan Calheiros, é o principal adversário político de Lira em Alagoas. “Eu conheço o Arthur: se o arqui-inimigo dele no estado tem um ministério, se não der dois para ele, não tem nem conversa”, diz um aliado do deputado. Lira também já avisou o entorno de Lula de que vários partidos da Câmara estão insatisfeitos pelo fato de não terem sido atendidos no rateio de cargos e que a distribuição de postos de segundo e terceiro escalões é a chave para tentar solucionar esse problema. Já há até quem preveja uma reforma ministerial para ampliar o espaço do grupo do parlamentar alagoano, que reúne integrantes de diferentes legendas. As queixas seriam mais frequentes justamente nos partidos de centro, dos quais Lula dependerá para aprovar projetos prioritários. Hoje, estima-se que a base governista tenha 260 votos na Câmara, bem menos do que os 308 necessários para aprovar uma emenda constitucional.
O Planalto terá de afagar Lira, o senhor do plenário, e mercadejar de forma permanente apoio, inclusive em legendas de oposição, a fim de conquistar vitórias na Câmara. “O poder de cooptação do governo é muito grande”, diz o deputado Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro de Bolsonaro. “Você tem alguma dúvida de que já tem parlamentares do PL que já querem ir para o PT? Acho que há uns vinte que já estão muito bem amarrados com o governo”, acrescenta. Lula conta com esse potencial adesismo para desidratar a oposição, mas sabe que, para atrair novos apoios, precisará mais do que nunca recorrer a velhas e valiosas moedas de troca — cargos, verbas e outros agrados oficiais.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827