Retorno de José Dirceu à cena política gera incômodo a Lula e ao PT
O companheiro se movimenta com desenvoltura impressionante para quem era dado como acabado depois de condenações na Justiça e temporadas na prisão
Ciente de que qualquer erro pode ser fatal, o ex-presidente Lula tem sido muito cuidadoso na construção de sua candidatura, hoje a favorita disparada nas pesquisas. Ele dá a última palavra nas decisões de campanha (sua palavra sempre se impõe à vontade do PT) e está à frente de todas as principais negociações com vistas a engordar seu palanque na corrida ao Palácio do Planalto. No partido, só uma pessoa vem fazendo contatos políticos sem a autorização expressa do chefe. O companheiro, aliás, tem se movimentado bastante e com desenvoltura impressionante para quem era dado como acabado depois de condenações na Justiça e temporadas na prisão. Ex-ministro da Casa Civil no primeiro governo Lula e ex-presidente do PT entre 1995 e 2002, José Dirceu, o personagem em questão, articula, com apetite renovado, conversas nos bastidores com membros insatisfeitos de siglas rivais e com ovelhas desgarradas ainda sem destino partidário.
Trata-se de um movimento que gera óbvio incômodo nas agremiações, mas que também preocupa o próprio PT, pelo fato de trazer à tona um personagem muito atrelado a um passado que o partido não gosta de lembrar. Os tucanos insatisfeitos com a vitória de João Doria nas prévias do partido à Presidência estiveram entre os alvos principais das investidas de Dirceu nos últimos meses. São nomes como os dos ex-senadores Aloysio Nunes Ferreira, José Anibal e Arthur Virgílio, ou de políticos que já anunciaram a intenção de deixar a sigla, como o ex-governador de Goiás Marconi Perillo. Mas os contatos vão além dos tucanos. Dirceu procurou ainda antigos caciques do MDB, como o ex-presidente José Sarney, o senador Renan Calheiros e o ex-emedebista Roberto Requião, que tenta viabilizar uma campanha para o governo do Paraná. Por ali, Dirceu buscou também diálogo com o governador Ratinho Jr. (PSD).
Dentro do sutil jogo de flertes políticos, no qual nem tudo é explicitado de imediato e as conversas iniciais servem mais para a sondagem de terreno, ninguém tocou claramente em alianças ou pedidos de declaração de apoio nas conversas com os tucanos. No caso de Aloysio, por exemplo, com quem Dirceu não conversava desde o impeachment de Dilma Rousseff, o encontro teve uma parte de sessão de nostalgia do início da vida política de ambos, nos anos 60. Com Anibal, as amenidades deixaram a impressão de que Dirceu buscava garantir a existência de uma relação institucional entre os caciques. “Lula sabe que tão importante quanto vencer é poder governar”, afirma o ex-senador. Entre a equipe de campanha de João Doria, a movimentação é vista como um gesto para isolar o tucano dos membros históricos do partido, com quem o governador paulista tem uma relação desgastada — a exceção é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que, reiteradas vezes, reafirma seu apoio a Doria.
Nesse périplo, a pauta para a aproximação de Dirceu com Renan foi bem mais explícita e serviu para tentar acelerar o que parece inevitável num futuro próximo. O senador do MDB não esconde sua preferência por uma aliança com Lula, caso seu partido não viabilize a candidatura da senadora Simone Tebet à Presidência. Detalhe: talvez ele seja surpreendido com um acordo entre seu partido e o PSDB. “Converso e tenho boa relação com todos. Conversei por telefone com Lula no fim do ano passado, com alguns que estiveram aqui em Alagoas e sempre converso com ele”, afirmou Renan a VEJA. Evidentemente, nem todas as investidas do petista foram bem recebidas. Quando Roberto Requião soube que Dirceu havia procurado também Ratinho Jr., contra quem ele deve disputar a eleição no Paraná, saiu criticando publicamente o petista. “Fiquei meio espantado com isso, mas depois me explicaram que ele gosta de parmigiana e eu não teria para oferecer”, ironiza Requião, bem ao seu estilo provocador.
A estratégia de Dirceu ao procurar esses encontros coincide com a da campanha de Lula. Integrantes da cúpula do PT sabem que é preciso caminhar em direção ao centro contra Jair Bolsonaro (o convite para Geraldo Alckmin ser o vice do partido é o sinal mais transparente disso) e contra o crescimento de uma terceira via. Mas a avaliação é que Lula tem condições de fazer por conta própria essas articulações, sem a necessidade de acionar o polêmico aliado. De acordo com interlocutores do líder petista, o ex-presidente acompanha a movimentação de Dirceu e tem se incomodado porque esse voo-solo ocorre sem a devida prestação de contas. Para piorar, Dirceu sempre deixa a impressão de que ele tem autoridade para falar em nome de Lula (o que não seria verdade). Nenhum integrante do núcleo duro da campanha, no entanto, aposta que o chefe irá desautorizar o ex-auxiliar, devido a seu passado de lealdade nos piores momentos do partido. Na corrida eleitoral deste ano, Lula queria que Dirceu trabalhasse junto aos militantes de base — e longe dos holofotes.
O apelo para uma atuação política bem mais discreta faz sentido, com base em uma avaliação de que a lembrança de ligação entre Dirceu e Lula só traz desgaste à candidatura. Condenado duas vezes no mensalão (em uma delas, conseguiu absolvição após recurso) e duas vezes pela Lava-Jato por crimes como corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha e obtenção de ganhos indevidos, Dirceu já foi preso quatro vezes e, diferentemente de seu chefe, não teve as sentenças anuladas — ele ainda pode voltar à prisão após a análise de seus recursos pelo Supremo Tribunal Federal. Suas penas, somadas, resultam em mais de trinta anos de prisão.
Mesmo que a corrupção não seja o tema mais quente do debate eleitoral, a presença ativa de Dirceu na cena política será um risco à imagem da campanha de Lula (ele próprio, aliás, sofrerá diversas pedradas em razão dos processos em que foi condenado). Os adversários do ex-presidente certamente vão lembrar dos esquemas do mensalão e do petrolão sempre que puderem — e as recentes reuniões de Dirceu com líderes de outros partidos só fornecem mais oportunidades para trazer esses assuntos à tona. “Lula vai ter de gastar energia para explicar o que aconteceu”, afirma o cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getulio Vargas. “Ele já não vai conseguir escapar desse debate e vai ser confrontado não apenas por Sergio Moro, mas pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, por Ciro Gomes e por Doria. Todos esses candidatos vão se utilizar estrategicamente dos escândalos bilionários em que o PT se envolveu e das condenações”, completa o especialista.
A bem da verdade, esse ponto da candidatura já tem sido explorado pelos rivais. Em um de seus últimos ataques aos petista, numa provocação certeira, Jair Bolsonaro afirmou que Dirceu voltaria à Casa Civil em um eventual governo do PT e que Dilma seria a ministra da Defesa. O ex-ministro teve de ir a público para desmentir (ainda bem que a ex-presidente, que pariu a pior recessão econômica da história, nem precisa fazer o mesmo). Em uma entrevista recente, Dirceu lembrou que petistas como ele ficaram muitos anos sem poder colocar os pés nas ruas — seja por manifestações desagradáveis das pessoas que os abordavam em locais públicos, seja por cumprimento de penas na cadeia. Ele sofreu na carne as duas situações. Agora está de volta, mesmo que isso gere incômodos e constrangimentos em seu próprio partido.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775