O vereador Carlos Bolsonaro é o mais reservado dos filhos adultos do presidente da República. Não gosta de dar entrevistas, cultiva poucas amizades, é desconfiado por natureza e dono de um temperamento “difícil”, segundo seus próprios familiares. A primeira-dama Michelle Bolsonaro não se dá bem com ele. O senador Flávio Bolsonaro mantém uma relação protocolar, distante, com o irmão. Já integrantes do governo têm medo do Zero Dois. Não sem razão. Sensível a teorias da conspiração, Carlos enxerga inimigos em todos os cantos e, por suspeitar de traição, convenceu o pai a demitir alguns ministros, como Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral da Presidência) e Santos Cruz (Secretaria de Governo), e a escantear o vice Hamilton Mourão. Apesar de o filho gerar atritos no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro protege Carlos como nenhum outro rebento de sua prole. “Ninguém mexe com ele” é o mantra do presidente. Motivo? VEJA ouviu explicações variadas, mas todas convergem num ponto: o ex-capitão credita a Carlos parte da responsabilidade por sua vitória na eleição de 2018 e o considera peça-chave na busca pela reeleição.
O vereador não faz parte da coordenação da campanha de Bolsonaro, formada por Flávio, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, e o ex-deputado Valdemar Costa Neto. Carlos não participa das articulações políticas nem tocará a propaganda eleitoral no rádio e na TV, mas, por ordem do presidente, tem carta branca para continuar seu trabalho nas redes sociais. Sua “espontaneidade” é considerada um ativo valioso e, por isso, não deve ser tutelada. Há quatro anos, impulsionado por um uma milícia digital comandada pelo vereador, Bolsonaro reinou soberano nas redes sociais. Em 2022, a goleada não deve se repetir, mas até o PT reconhece que não conseguirá nem mesmo empatar o jogo. A estratégia de Lula é reduzir danos e perder de pouco nesse campo. “Carlos é um gênio”, diz um conselheiro do ex-presidente, reconhecendo a eficácia do trabalho do vereador, que consiste em exaltar a figura do pai, enaltecer as realizações do governo e atacar os adversários — com argumentos verdadeiros ou não. O elogio do conselheiro de Lula não é um caso isolado. Numa conversa reservada depois de ser demitido da função de marqueteiro da campanha presidencial do PT, Augusto Fonseca reconheceu a força do bolsonarismo digital: “Eles estão muito bem organizados e fazem o trabalho de forma mais profissional”.
Viciado em trabalho e obcecado pela figura do pai, Carlos opera hoje com mais amarras do que na eleição passada, já que é alvo da CPI das Fake News e investigado num inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF), relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, que trata da atuação das milícias digitais e de ataques à democracia. Na mira das duas apurações, o vereador sabe que não pode cometer deslizes nem repetir velhas práticas. Essa pressão, no entanto, não recai sobre seus aliados espalhados pelo Brasil e pelo exterior, que continuam a fazer o serviço mais pesado, inclusive o sujo. A guerrilha bolsonarista, como se sabe, é aguerrida e — ao contrário da petista, que atua em horário comercial — combate 24 horas por dia. Duas de suas divisões mais importantes têm relação estreita com Carlos. Uma delas é composta de pessoas que são da confiança dele e têm cargos públicos, como os assessores presidenciais Tércio Arnaud Tomaz e Filipe Martins. Eles monitoram o que se fala sobre Bolsonaro na imprensa tradicional e nas redes sociais, além dos discursos e informações relacionados aos adversários. Depois, abastecem o WhatsApp do vereador com sugestões de conteúdos que podem ser usados politicamente.
A segunda divisão ligada a Carlos engloba, direta e indiretamente, cerca de 200 pessoas, donas de perfis influentes (fakes ou não), cada uma com capacidade de gerenciar outros dez perfis falsos, preparados para veicular aquilo que o vereador mandar. Do grupo também fazem parte blogueiros com grande audiência, como o conservador Kim Paim, que tem 634 000 seguidores no Twitter e recebeu o apelido de “o Diário Oficial de Carlos”. O vereador usa ainda uma série de grupos de transmissão de informações, muitos deles abastecidos com vídeos que ele prepara no próprio celular. Enquanto o Zero Dois e sua tropa são rápidos na disseminação da munição a ser usada pelos bolsonaristas no embate político, a oposição age como se estivesse em tempos analógicos. “No bolsonarismo digital, há diversas pessoas ligadas aos filhos do presidente. Todas estão em contato direto com Carlos e têm presença grande nas redes sociais. Coordenam o tópico, o tema do momento em que vão agir coordenadamente, e sempre estão sincronizadas na mensagem. Viraliza muito rápido porque essas contas têm milhares de seguidores”, diz David Nemer, professor da Universidade da Virgínia e pesquisador de Harvard, que estudou a atuação das milícias digitais em 2018.
Por dever de ofício, Carlos até entra no debate de mérito de alguns assuntos. Ele municiou os seguidores com informações sobre o perdão judicial ao deputado bolsonarista Daniel Silveira tão logo o caso eclodiu e, portanto, muito antes de um vacilante Lula se posicionar a respeito. O vereador também é um defensor persistente da tese de que a inflação é fenômeno global — tese que sustenta com recortes de notícias da imprensa tradicional, a mesma que repudia quando lhe convém. A sua predileção é pegar declarações dos rivais e usá-las para desgastá-los. Lula é o alvo preferencial. Carlos não perdoou uma derrapada sequer do ex-presidente, da crítica à classe média brasileira à desastrosa “Bolsonaro não gosta de gente, gosta é de policial”. Mesmo distante dos líderes das pesquisas, Ciro Gomes (PDT) não foi poupado quando xingou um apoiador do presidente. O vídeo do ex-ministro logo foi postado no canal do vereador no Telegram, que copiou a peça de outro perfil da linha de produção bolsonarista. “Pensa, só pensa se fosse o Bolsonaro”, era a legenda. “Pode-se falar o que quiser de Carlos, mas ele sabe lidar com isso. O bolsonarismo nada de braçada nessa área, tem capacidade de verbalizar a imagem que atrai nas redes e reter audiência muito maior que outras campanhas”, diz o cientista político Cláudio Couto, da FGV. “Mas os outros candidatos ficaram mais escolados do que no passado. A vantagem que Bolsonaro teve nessa área em 2018 não vai ser tão grande desta vez.”
Consciente da importância do embate digital, o PT quer reduzir a desvantagem o máximo que puder. Como não tem uma rede tão numerosa e organizada quanto a bolsonarista, o partido pretende pegar carona em influenciadores e artistas com grande número de seguidores. A ideia é que estes, e não os políticos e integrantes do partido, comandem o embate com o rival no universo digital. É por isso que Lula, de uns tempos para cá, passou a postar fotos com celebridades e a interagir com elas. É por isso também que Bolsonaro, vez ou outra, comenta com ironia ou irreverência a mensagem do artista que se manifesta a favor de Lula. O presidente aposta na “lacração” para tentar neutralizar a tática petista. Entusiasta de Lula, a cantora Anitta, por exemplo, publicou uma mensagem dizendo que a bandeira do Brasil pertence a todos os brasileiros e não deveria ser apropriada por um grupo específico. Bolsonaro respondeu prontamente: “Concordo com a Anitta”. Assim, o presidente também chegou ao grupo de fãs da artista.
Há também uma leve diferença entre os alvos dessas mensagens. Segundo a Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da FGV, tanto Lula quanto Bolsonaro têm apostado em “memes” e “lacrações” em busca de engajamento. O detalhe é que o petista tenta falar para um público mais amplo, além da esquerda, enquanto o atual mandatário reforça os laços com seu eleitorado fiel. Entre 4 e 24 de abril, a DAPP identificou 37,7 milhões de interações e visualizações nos perfis dos pré-candidatos à Presidência. No período, o grupo de apoiadores de Lula foi responsável por 37,53% dos perfis que participaram do debate, mais até do que o porcentual de aliados de Bolsonaro (35,23%). O problema é que os bolsonaristas foram mais ativos e responderam por 58,63% das interações, contra 30,27% dos petistas. Entre as várias missões de Carlos está justamente manter a tropa arregimentada e aguerrida contra os adversários da política e da classe artística. “O Carlos tem feeling, não perde a comunicação com nosso público originário e consegue sozinho fazer conteúdos para esclarecer os jovens. Vai levar esse conteúdo de forma que só ele sabe comunicar”, diz o irmão Flávio.
A importância do Zero Dois no projeto político do presidente é antiga. Carlos assumiu as redes sociais do pai em 2010, quando Bolsonaro ainda era deputado do baixo clero. Na época, ele queria amenizar a imagem do ex-capitão e fazê-lo atingir um público maior, não necessariamente vinculado à caserna. Começou, então, a implantar uma estratégia de marketing que apresentava Bolsonaro como um sujeito espontâneo, simples, gente como a gente, até hoje explorada à exaustão. Em 2018, ele se tornou ponta de lança na campanha de Bolsonaro, que era divulgada basicamente nas redes sociais, já que o então deputado dispunha de menos de dez segundos na propaganda eleitoral de TV. Embora eficiente, seu estilo de comunicação várias vezes recorre a palavras rudes e xingamentos. Numa postagem recente, o vereador rebateu a versão de que o perdão a Daniel Silveira foi dado para abrir um precedente que, no futuro, seria usado para também livrar da prisão os filhos do presidente da República. “Lá vem eles com papo de filhos de novo! Cambada de canalhas”, escreveu. Em sua guerrilha digital, Carlos não é de respeitar limites. Funcionou até aqui, é verdade, mas também pode ser devastador num pleito que será extremamente vigiado.
ALVOS INTERNOS
O Zero Dois esteve na origem de intrigas que já resultaram na demissão de ministros do governo
Gustavo Bebianno
Foi o primeiro ministro a entrar na lista de desafetos de Carlos Bolsonaro, que o acusava de participar de uma trama destinada a desestabilizar o presidente da República. O ministro, já falecido, foi demitido
Santos Cruz
Desde o início do mandato de seu pai, Carlos criticava a área de comunicação do governo, na época sob responsabilidade do general, demitido após circular uma mensagem atribuída a ele com críticas ao presidente
Sergio Moro
O então ministro da Justiça começou a perder prestígio com a família ao não defender os filhos do presidente investigados na Justiça. Carlos passou a se referir ao ex-juiz como o sujeito que sonhava com o lugar de seu pai
Hamilton Mourão
Carlos foi um dos que convenceram o presidente de que seu vice conspirava para derrubá-lo do cargo. Depois disso, o general foi escanteado e não estará na chapa à reeleição que concorrerá neste ano
Augusto Heleno
Obcecado pela segurança de seu pai, o vereador criticou a atuação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general, classificando-o de incompetente e inconfiável
Colaborou Letícia Casado
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789