Sempre em busca de um remédio miraculoso contra a Covid-19, o governo chegou a apostar suas fichas em um spray israelense à base de uma proteína que provocaria uma reação no organismo capaz de minimizar os efeitos da doença. Atrás do negócio tratado por Jair Bolsonaro como um “produto milagroso”, dez autoridades embarcaram céleres ao país do Oriente Médio entre os dias 7 e 9 de março para conhecer de perto a tal maravilha. Chefiada pelo então chanceler Ernesto Araújo, a comitiva contou com a presença do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que se revoltou na volta com as críticas dos que apontaram o absurdo de uma missão desperdiçar tempo e dinheiro público com um tratamento ainda em caráter experimental. A repercussão foi ainda pior com a reprimenda recebida por Ernesto Araújo dos anfitriões por não estar usando máscara em uma cerimônia oficial. “ ‘Ah, a máscara, está sem máscara, está com máscara’. Enfia no rabo, gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando…”, desabafou o filho Zero Três do presidente, acrescentando que a viagem teria avançado num possível acordo para trazer ao Brasil as fases 2 e 3 da pesquisa sobre o tratamento.
Passados quatro meses, a euforia em torno do spray se dissipou. Discretamente, o governo desembarcou da história da “cloroquina nasal”. Procurado por VEJA, o Ministério das Relações Exteriores relatou por meio de uma nota que a comitiva de março se reuniu com o diretor do Hospital lchilov, Ronni Gamzu, e com o chefe do Centro de Pesquisa Médica do hospital, Nadir Arber, além de representantes da empresa OBTCD24, que desenvolve o spray. Segundo o Itamaraty, o encontro teve como resultado somente uma “carta de intenções” em relação à compra do produto, mas o processo de negociação subsequente, concentrado em aspectos técnicos, ficaria sob responsabilidade do Ministério da Saúde. Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa da pasta informou que não há nenhuma negociação em andamento. Em conversa recente com VEJA, o ministro Marcelo Queiroga esquivou-se quando perguntado sobre o motivo de a história ter sido enterrada pelo governo: “Eu não estava aqui no ministério, então não tenho detalhes acerca desse aspecto”. Os israelenses envolvidos na pesquisa também ficaram a ver navios com a falta de maiores explicações para o sumiço dos contatos, após o encontro inicial ter sido avaliado como promissor por ambas as partes. O que faltou então para o acordo ser celebrado? “É uma boa pergunta para ser feita ao Brasil”, disse a VEJA Nadir Arber. “Nós sempre dissemos ‘sim’ e estivemos dispostos a colaborar.”
Quando os pesquisadores receberam a comitiva no Oriente Médio chefiada por Ernesto Araújo, o Brasil registrava 264 325 mortes por Covid-19 e praticamente a única vacina disponível era a CoronaVac, por insistência do governador João Doria (PSDB-SP), que enfrentou e venceu a má vontade de Bolsonaro contra o imunizante. À época, o spray encontrava-se na fase 1 de testes, dentro de um grupo de trinta pacientes. Com o financiamento da Sociedade Médica de Atenas, atualmente ele está em fase 2 de estudos na Grécia. Nessa etapa, participam noventa pacientes com infecção moderada ou grave por Covid-19. Não há previsão sobre o cronograma da fase 3, a última etapa necessária antes da aprovação do medicamento.
Enquanto isso, atualmente, o Brasil acumula mais de 550 000 mortes na pandemia e, depois de um início que deu margem a muitas preocupações, finalmente o governo federal voltou toda sua energia para um programa maciço de vacinação, algo que já apresenta resultados importantes no combate à doença. Já o único rastro visível do spray que virou fumaça foi a conta de 88 000 reais paga pelos cofres públicos para bancar a viagem da comitiva a Israel.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749