A expressão “crack” surgiu pela primeira vez em novembro de 1985, em uma reportagem do jornal The New York Times que narrava como o derivado barato da cocaína havia tomado áreas expressivas da cidade e criado rapidamente uma legião de viciados. Seis anos depois, a polícia faria a primeira apreensão do produto no Brasil, no entorno da Estação da Luz, área central de São Paulo. Dali para a frente, ancorada no potencial destruidor da droga, na deterioração social dos grandes centros urbanos, na livre ação de traficantes e na inépcia do poder público, a cena dantesca de gente vagando por ruas degradadas só cresceu, a ponto de a região ganhar o triste codinome de “cracolândia”. Desde então, se sucederam iniciativas estaduais e municipais, que foram da opção pela força policial — a primeira intervenção, em 1995, ordenada pelo governador Mario Covas, se chamou Tolerância Zero — à abordagem mais humanista (como o programa De Braços Abertos, do prefeito Fernando Haddad), passando por grandes projetos de revitalização urbanística, como o Nova Luz, do prefeito José Serra.
Quase sempre, essas ações foram acompanhadas de sentenças definitivas — e furadas — sobre o problema. “A cracolândia não existe mais”, disse o prefeito Gilberto Kassab em 2008. “Pode escrever, a cracolândia vai desaparecer”, prometeu o governador Geraldo Alckmin em 2017, mesmo ano em que o prefeito João Doria bancou: “A cracolândia acabou”. Não só não acabou, como se consolidou. Pesquisa divulgada pela Unifesp em janeiro ilustra o tamanho do fracasso do poder público para resolver a questão: quatro em cada dez usuários frequentam a região há pelo menos dez anos — um porcentual parecido com os de Brasília e Fortaleza (veja o quadro abaixo), também incluídas no estudo.
O problema que assombra a cidade há três décadas vai ser alvo agora de uma nova investida. Logo nos primeiros vinte dias de gestão, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) reuniu o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e representantes do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, entidades religiosas e organizações sociais para articular uma ambiciosa intervenção, que pretende reunir políticas de saúde, urbanísticas, econômicas e de segurança para tentar equacionar o problema. O pacote prevê a abertura de 1 000 vagas de internação em comunidades terapêuticas, 264 leitos para desintoxicação em hospitais, contratação de 200 profissionais especializados para a abordagem de dependentes e o pagamento de uma ajuda financeira de 600 a 1 200 reais para a família que acolher o usuário de volta. O Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod) será reformulado para funcionar como uma casa de passagem, com quarenta vagas, e uma base para a atuação de membros do MP, da Justiça e da sociedade civil. O plano prevê, ainda, 700 novas moradias na área e a revitalização de espaços públicos.
Apesar de ser um militar da reserva e de ter sua base no bolsonarismo, Tarcísio não priorizou a repressão policial. Na segurança, haverá um sistema de monitoramento com 500 câmeras e a adoção da “justiça terapêutica”, prevista na Lei Nacional Antidrogas, que dá ao usuário a chance de optar pela internação em vez de responder por algum crime relacionado a drogas. A internação compulsória, um tabu nesse tipo de enfrentamento, só deverá ser adotada “em último caso” e com decisão judicial, segundo Tarcísio. “Vamos partir do pressuposto de que cada pessoa é uma. Temos de ter um cardápio de opções para não perder oportunidades”, afirma o governador.
Embora tenha optado por uma intervenção transversal para enfrentar um problema de fato complexo, o plano exclui uma iniciativa comum em países desenvolvidos que conseguiram algum avanço no combate ao crack. Alemanha, Noruega e Dinamarca, por exemplo, conseguiram reduzir cenas de uso de drogas com acompanhamento médico e salas para uso assistido — nelas, o usuário pode utilizar a substância em menor quantidade e com auxílio de um profissional de saúde, o que diminuiu mortes por overdose e outros danos ao evitar o compartilhamento de seringas e cachimbos. Para a pesquisadora Maria Angélica Comis, a nova iniciativa preocupa por focar a abstinência. “Parte das pessoas não adere às alternativas ofertadas. É necessária uma abordagem de baixa exigência, baseada na redução de danos, que está na lei municipal. Mas não houve nenhuma proposta nesse sentido”, avalia.
O plano demonstra vontade para resolver a questão, mas os últimos anos já mostraram que isso não basta. Tarcísio fez uma aposta alta ao lançar o pacote na sede do governo e escalar o seu vice, Felicio Ramuth, para liderar o enfrentamento de um tema que sempre foi mais da alçada da prefeitura. Novato na política, arrumou um bom desafio logo na largada. Apesar do histórico desfavorável, a torcida, como sempre, é para que dê certo.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826