Nos últimos três meses, desembargadores e juízes e até delatores reuniram um conjunto de inquéritos em segredo de Justiça, depoimentos de testemunhas, relatórios policiais, mensagens trocadas em aplicativos e arquivos de computador e encaminharam tudo ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O material foi anexado a dois processos sigilosos que têm como alvo um personagem que nos últimos anos determinou a prisão de um ex-presidente da República e de três ex-governadores e tocou apurações que envolveram mais de 900 pessoas e que resultaram na recuperação de cerca de 4 bilhões de reais que haviam sido desviados dos cofres públicos. Responsável pelo braço da Lava-Jato no Rio de Janeiro, o juiz Marcelo Bretas está agora no papel de investigado e será julgado publicamente na terça-feira 28, sob a alegação de que mantinha uma parceria espúria com procuradores e um advogado para direcionar processos, combinar sentenças e conduzir apurações clandestinas contra alvos predefinidos.
Nessa data o CNJ, órgão responsável por investigar abusos e irregularidades praticados por magistrados, vai decidir se instaurará ou não processo administrativo disciplinar contra Bretas por desvio de conduta e se pretende impor a ele alguma penalidade antecipada — na mais radical delas, conselheiros podem deliberar sobre seu afastamento imediato do cargo. “É a última ponta solta da Lava-Jato”, confidenciou a VEJA um juiz que acompanha o caso. É assim, com ares de acerto de contas, que membros do Conselho tratam o julgamento e a provável punição do magistrado que, ao lado de Sergio Moro no Paraná, protagonizou a maior operação de combate à corrupção da história do país, que resultou na prisão de políticos como o ex-presidente Michel Temer e o ex-governador do Rio Sérgio Cabral.
O cerco a Marcelo Bretas teve início após uma reportagem de VEJA revelar, em 2021, que o criminalista Nythalmar Dias Ferreira Filho procurou a Justiça para acusar o magistrado de perseguir investigados, orientar estratégias de defesa e negociar penas, e ganhou reforço após um delator contar que havia investigações clandestinas na vara conduzida pelo juiz, que Nythalmar tinha acesso ilegal e antecipado a quebras de sigilo de investigados e que acordos de colaboração eram forjados para incriminar determinadas pessoas. Em novembro passado, o CNJ determinou uma fiscalização extraordinária na vara do magistrado e, por ordem do corregedor Luis Felipe Salomão, documentos e o computador de uso exclusivo do juiz foram recolhidos como provas.
Nythalmar é o pivô desse caso. Advogado modesto, ele passou de uma hora para outra a ser um dos defensores mais requisitados por autoridades encrencadas no braço fluminense da operação. Bancas de advocacia alimentavam rumores de que ele tinha tratamento privilegiado de Bretas, suspeita que o levou a ser acusado de tráfico de influência e gerou uma ordem de busca e apreensão em endereços ligados a ele. Em uma leva de diálogos encontrados no telefone do advogado e recebidos pelo CNJ, a hoje deputada federal Danielle Cunha, filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, cobra explicações de Nythalmar após atribuir a ele o vazamento de provas de uma operação policial. “Vc vazou provas. Ainda comprometeu a pessoa da operação. Qual o nexo disso???”, escreveu a parlamentar em maio de 2020. A partir da data, a PF depreendeu que ela estivesse se referindo à operação que investigou deputados estaduais do Rio, entre os quais o hoje senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), mas não há certeza.
Procurado, o advogado não se pronunciou. Danielle disse não se lembrar exatamente do que tratava nas mensagens, negou que falasse da operação que atingiu Flávio Bolsonaro e afirmou que Nythalmar, que também defendia Eduardo Cunha, gostava de vazar para a imprensa informações sobre seus clientes. Uma das peças mais importantes do processo contra o juiz da Lava-Jato é a delação feita pelo próprio Nythalmar. Na colaboração, ele afirma que Bretas prometeu “aliviar” a pena de um empresário caso ele aceitasse fazer uma delação. A lei proíbe que juiz se envolva na produção de provas. O corregedor Luis Felipe Salomão elencou o caso de Bretas como prioridade número 1 do CNJ, rompendo críticas de que investigações sensíveis eram sempre deixadas de lado pelo órgão. Criado há dezoito anos, o CNJ abriu mais de uma centena de processos contra juízes e em pouco mais da metade impôs alguma penalidade aos investigados. Marcelo Bretas pode ser o personagem mais vistoso dessa lista.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830