Um tipo de democracia para cada um
A palavra tem interpretações contraditórias, conforme o freguês
A pesquisa VEJA/FSB, publicada na edição desta semana, revela que a maioria dos eleitores prefere a democracia a ditadura, mas não subestima a possibilidade da instalação de um regime autoritário. É um achado relevante. É alentador para quem acredita que o preço da liberdade é a eterna vigilância, e que a democracia é uma plantinha tenra a ser sempre bem cuidada.
Há alguma polêmica sobre a autoria da primeira frase, mas a segunda é mesmo de Octavio Mangabeira, o prócer udenista baiano. Depois, a UDN e os herdeiros políticos dela se meteram nas mais variadas ações para derrubar governos eleitos, e algumas até deram certo. Mas isso é outra história, e a máxima do Mangabeira continua atual.
Uma ampla maioria quer a democracia, mas talvez as próximas pesquisas devessem destrinchar a coisa. É possível estarem embutidas em “democracia” pelo menos duas visões com potencial de antagonismo. Uns podem acreditar que democracia é a soberania das instituições e dos mecanismos de freios e contrapesos ao poder. Outros, que é a eleição direta de um César.
O evento fundador da moderna democracia constitucional brasileira foi as Diretas Já, a campanha em 1984 pela eleição popular do presidente da República. Esse traço foi reforçado quando o presidencialismo derrotou o parlamentarismo no plebiscito de 1993, numa proporção de 7 a 3, apesar do apoio do establishment ao sistema parlamentar de governo.
Antes da primeira eleição presidencial direta tivemos a Constituinte, mas, conforme o tempo passa, a memória e a importância dela vão se diluindo e virando fumaça. Difícil achar hoje em dia quem defenda a sério cumprir a Carta de 1988 segundo a intenção original daqueles formuladores. E miniconstituintes de fato já funcionam para valer no Legislativo e no Judiciário.
É possível estarem embutidas em “democracia” duas visões antagônicas. Pode ser a soberania dos freios e contrapesos. Ou a eleição direta de um César
Sobrou então a eleição direta dos governantes, em especial do presidente. E a força resiliente desse ritual, somada ao desgaste progressivo dos responsáveis pelos tais freios e contrapesos, alimenta o viés cesarista-bonapartista do Executivo. O que se encaixa na nossa tradição de ter um poder moderador, desde quando D. Pedro I fechou a primeira Assembleia Constituinte.
Freios e contrapesos para valer só existiram no Brasil quando o Executivo se enfraqueceu. Quando, por exemplo, José Sarney teve de dividir poder com o presidente do PMDB, da Câmara dos Deputados e da Constituinte, Ulysses Guimarães. Ou quando Fernando Collor e Dilma Rousseff foram lipoaspirados até cair. Ou quando Michel Temer teve de dedicar todas as energias para não sofrer o destino dos dois.
Jair Bolsonaro assumiu o governo numa Brasília balcanizada, depois de quase cinco anos de blitzkrieg da Lava-Jato contra a política realmente existente, e sabia-se que ele precisaria tentar reaver o poder moderador do Executivo. É o que está fazendo, com persistência. O Congresso joga razoavelmente livre? Sim, porque no essencial está tocando a pauta que interessa ao governo. Não tem opção.
De vez em quando alguém aposta que, a cada avanço da agenda governamental, o presidente se enfraquecerá e o Legislativo -e outros se fortalecerão. Aposta e perde.
(*) Alon Feuerwerker é analista político do Instituto FSB Pesquisa