Houve um tempo em que pouquíssimas coisas eram tão difíceis no Brasil quanto ser um herói. Faça as contas: quantos heróis, mas heróis de verdade, você conseguiria pôr na sua lista? É duro de admitir, mas o fato é que nunca deu para encher nem o espaço de um guardanapo de papel, de tamanho pequeno, com os nomes de brasileiros que poderiam reivindicar para si, por força das ações concretas que praticaram em vida, a condição de “glória nacional”. O fato é que o sujeito precisava ser um Tiradentes, no mínimo, para que fosse considerado um herói com padrão de qualidade garantido. Sempre se podem discutir as medidas exatas do heroísmo de Tiradentes — Getúlio Vargas, por exemplo, chegou a cassar o feriado de 21 de abril —, mas nos 227 anos que se passaram desde a sua morte na forca de dona Maria I, a Louca, quem apareceu com o mesmo tamanho? Ninguém.
É verdade que existe uma lista com 52 heróis e heroínas oficiais do Brasil, cujos nomes estão escritos em páginas de aço no Panteão da Pátria, em Brasília; Tiradentes, aliás, é o primeiro. Mas muita gente não assinaria embaixo. O título de herói oficial é dado por decisão do Senado Federal e da Câmara dos Deputados — e só isso já chega para avacalhar qualquer conversa a respeito de heroísmo. Além do mais, fazem parte da lista figuras como Zumbi, Chico Mendes ou Marechal Deodoro, que traiu o seu imperador com um golpe de Estado — o que mostra bem o tipo de qualidade requerida para um cidadão receber o certificado de herói brasileiro. (Considerava-se, até há pouco, a inclusão de Ayrton Senna no Panteão da Pátria.) Fazer o quê? Também não é razoável esperar que o nosso panteão de heróis e heroínas tenha um nome só; como ficaria a imagem do Brasil no exterior, especialmente agora que os eleitores colocaram a direita no governo? Não dá. Ficamos, assim, naquela situação de “se não tem tu, vai tu mesmo”, como se diz. A verdade é que, depois de Tiradentes, conseguimos fazer uma guerra inteira contra o Paraguai, durante mais de cinco anos, sem que ao fim houvesse a produção de um único herói claro. Na Guerra da Independência contra Portugal, o comandante de maior destaque foi o almirante Grenfell — mas ele era inglês e, embora tenha perdido um braço em combate lutando pelo Brasil, foi um tipo que hoje se chamaria de “polêmico”. (Entre outros feitos, chegou a trancar 256 simpatizantes da causa portuguesa no porão de um navio em Belém do Pará; morreram todos. Mais tarde, foi absolvido numa corte marcial do Rio de Janeiro, por falta de provas.)
Para ser herói hoje basta a certidão de “pessoa de esquerda”
Antes, no passado remoto, houve O Anhanguera, Fernão Dias ou Raposo Tavares, o Marco Polo brasileiro. Mas, se você lembrar esses nomes, a CNBB, o papa Francisco e a Comissão de Direitos Humanos da ONU podem vir com acusações de genocídio contra os índios; é melhor não mexer com isso. Santos Dumont, mais recentemente? Oswaldo Cruz? Gente fina, mas sem apoio entre os “influencers”. Agora, enfim, tudo isso mudou. Hoje, dependendo da sua imagem nas classes intelectuais, liberais, progressistas etc., ser herói é uma das coisas mais fáceis: basta obter uma certidão de “pessoa de esquerda”. Assassinos patológicos como um Carlos Marighella, por exemplo, têm direito a estrelar, no papel de salvador do Brasil, filmes pagos com o dinheiro dos seus impostos. Um psicopata homicida como Carlos Lamarca chegou a ganhar uma estátua num parque florestal de São Paulo. A vereadora Marielle Franco jamais recebeu uma única citação por algo de útil que tenha feito em toda a sua vida política, mas, depois de ser assassinada “pelo fascismo”, é tratada como um dos maiores colossos da história nacional.
O herói dos comunicadores, neste momento, é o ex-deputado Jean Wyllys. A soma total das realizações de sua existência se resume a ter ganhado, anos atrás, o prêmio de um programa de televisão que compete com o que existe de pior na luta pela audiência das classes Y e Z. Outra foi cuspir, no conforto de quem está cercado por um bolo de gente, num colega na Câmara dos Deputados — justamente o que acabaria se tornando o atual presidente da República, vejam só. Agora, alegando subitamente ameaças à própria vida na internet, abandonou o mandato, os eleitores e suas promessas de “resistência” — e fugiu para a Espanha. Pronto: virou herói instantâneo. Agredido mesmo nessa disputa, até agora, foi Bolsonaro, vítima de uma tentativa de homicídio que quase lhe tirou a vida e acaba de exigir uma terceira cirurgia, com sete horas de duração. Mas o mártir é a figura que cuspiu. É o Brasil 2019.
Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620