Estagiário do Ibama na adolescência, o paulista Rodrigo Agostinho retornou ao órgão, esvaziado pelo governo de Jair Bolsonaro, para a difícil missão de comandar a retomada dos trabalhos de fiscalização e defesa do meio ambiente. Tomou posse como presidente do instituto em fevereiro e, desde então, já enfrentou alguns desafios, como a operação na Terra Indígena Yanomami e o cerco contra o garimpo ilegal na região — como mostra reportagem na edição de VEJA desta semana.
Antes de assumir o cargo, Agostinho foi prefeito de Bauru (SP) e deputado federal pelo PSB. Na Câmara, presidiu a Comissão de Meio Ambiente por dois anos e integrou as comissões de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural. Em entrevista a VEJA, o novo presidente do Ibama fala sobre a situação que encontrou ao assumir o comando do órgão, o plano de reforçar o combate aos crimes ambientais e as questões espinhosas com as quais terá que lidar nos próximos meses, incluindo a renovação da licença de operação da usina de Belo Monte e a autorização para que a Petrobras explore petróleo na foz do rio Amazonas.
No governo Jair Bolsonaro, a fiscalização pelo Ibama foi esvaziada, o desmatamento cresceu, o quadro de servidores foi reduzido e os que ficaram relataram ameaças e perseguição. Nesse cenário, o que mais te surpreendeu ao assumir o comando do órgão? Como coordenador da frente parlamentar ambientalista na Câmara, eu sempre solicitava informações, mas a gente não tinha noção do estrago que tinha dentro da governança do Ibama. Uma quantidade muito grande de policiais militares, bombeiros e representantes do Exército ocupando postos-chave, muitas superintendências nas mãos de políticos indicados pelo governo anterior, mas sem nenhuma ligação com o tema ambiental, além de um desmonte de áreas estratégicas. Hoje o Ibama funciona pela metade, temos apenas 53% do efetivo disponível, 470 servidores com idade para se aposentar e 200 servidores que já avisaram que não vão continuar. É muito difícil você tocar o combate ao desmatamento, o licenciamento ambiental e o monitoramento da qualidade ambiental do país sem estrutura e com servidores acuados e assustados. O Ibama tem hoje 2.900 servidores no Brasil e mais de 5.000 processos administrativos. Era quase impossível trabalhar com eficiência com esses números.
Já são quase dois meses de ação do Ibama e da PF na Terra Indígena Yanomami. Há receio de que os garimpeiros voltem para o território depois de um tempo. A ação vai ser permanente na região? Tivemos uma redução dos alertas de desmatamento de quase 80% dentro da área indígena. Foram 52 autos de infração, 28 milhões de multas aplicadas nas áreas de garimpo, apreendemos oito aeronaves, 23 barcos, três tratores. Foi uma desmobilização enorme com o apoio de várias outras instituições, como as polícias Federal e Federal Rodoviária. Desmontamos 285 acampamentos de garimpo. Em um determinado momento iremos diminuir o efetivo, até porque o garimpo se reduziu bastante, mas não vamos sair de lá enquanto tiver garimpeiro dentro da área. O nosso efetivo é muito pequeno. O Ibama chegou a ter quase 2.000 fiscais, hoje tem 700 – apenas 300 com condições de ir para campo no Brasil inteiro. Ficamos o tempo todo mudando os fiscais de lugar para que possamos atuar. Nesse período de cem dias, conseguimos aumentar em 219% dos autos de infração por desmatamento, aumentamos as multas em 78% e estamos com estratégias de embargo e apreensão de bens para coibir a prática de crimes. Vamos fazer aquilo que estiver ao nosso alcance para reduzir o desmatamento. Não vai ser uma missão fácil.
Em quantos territórios vocês pretendem atuar nos próximos meses? Há outras situações graves como a dos ianomâmis? Ao longo do ano nós vamos organizar operações de combate ao garimpo em outras sete terras indígenas. Do ponto de vista humanitário, o mais grave realmente era na terra ianomâmi, mas tem problemas muito graves com os mundurucus e com os caiapós. São dois territórios grandes em que os garimpeiros acabaram cooptando parte dos indígenas para trabalhar na mão de obra do garimpo. É algo bastante sensível, mas nós temos uma decisão judicial que ampara as nossas ações e estamos fazendo planejamento estratégico para que possamos também foi coibir o garimpo nessas áreas ao longo do ano.
Indígenas continuam relatando invasões de pescadores e madeireiros ilegais no Vale do Javari, região onde Dom Phillips e Bruno Pereira foram mortos no ano passado. Como o Ibama vai trabalhar para aumentar a fiscalização na região? O Ibama tinha uma base em Tabatinga, estamos trabalhando para reabri-la. Ali é uma região de tríplice-fronteira com o Peru e com a Colômbia, onde tem invasões para caçar animais dentro do território brasileiro, muita pesca ilegal utilizada para lavagem de dinheiro de droga, violência armada, além de um problema seríssimo de pirataria, grupos armados que circulam roubando pescadores, carga, combustível, motores. Há grande ausência do Estado na região. Em março, o Ibama fez uma operação no Vale do Javari para destruir os garimpos, mas nós vamos continuar com a presença na região. Teremos essa base permanente.
Há hoje essa rede de crimes na Amazônia, em que facções que comandam o tráfico de drogas na região passaram se infiltrar também em outras atividades como desmatamento, pesca ilegal e garimpo. Como lutar contra isso? É importante que tenhamos um bom trabalho com a Polícia Federal para que a gente consiga ser mais assertivo. Eu acho que, no caso específico da Amazônia, precisamos ter um conjunto enorme de soluções. Uma parte dessas soluções está na mão do Ibama, com o comando, controle e ações de fiscalização, mas nós também precisamos de alternativas econômicas. Precisamos levar o turismo para dentro da Amazônia, o mundo inteiro quer conhecer e a estrutura é muito ruim. Precisamos que a bioeconomia pare de pé, precisamos colocar regras para o mercado de carbono. No caso específico do Vale do Javari, é necessário melhorar o controle das fronteiras e ter uma presença maior do estado brasileiro na região.
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou uma MP do governo Bolsonaro que afrouxa as regras de proteção à Mata Atlântica, após um acordo com a liderança do governo. Os deputados “passaram a boiada?” A bancada da agropecuária já vinha trabalhando para mudar a Lei da Mata Atlântica nos últimos anos, com vários projetos que tramitam na Câmara, principalmente na Comissão de Meio Ambiente. Esses projetos não foram aprovados na legislatura passada e o relator percebeu que poderia incluir esse tema na medida provisória. A MP tratava de um prazo para regularização ambiental das propriedades e foram inseridos itens que afrouxam regras de uma lei específica da Mata Atlântica. É o que a gente comumente chama de jabuti. Caberia inclusive judicialização nesse caso. É um erro em um momento em que estamos tentando controlar o desmatamento e pode ser interpretado como inconstitucionalidade. Mas eu acredito muito na capacidade do Senado em entender que não faz o mínimo sentido diminuir a proteção sobre um dos biomas mais ameaçados do mundo. Acredito que o Senado vai modificar esse texto.
Um dos setores mais resistentes ao governo Lula é o do agronegócio. O Ibama começou essa operação para tirar gado de áreas embargadas da Amazônia. O senhor teme que isso amplie o desgaste do setor com Lula? O Ibama não tem interesse nenhum de se apropriar de patrimônio de ninguém, mas vamos ser muito duros do ponto de vista de buscar estratégias para redução do desmatamento, que está completamente fora de controle. Mudou o governo e as pessoas continuam desmatando em algumas regiões da Amazônia. Vamos fazer o que tiver ao nosso alcance, mas respeitando a lei, com bom senso. A retirada de gado tem sido a exceção, em casos muito extremos em que os embargos estão sendo desrespeitados e se faz necessária uma ação mais enérgica. A maior parte do agronegócio brasileiro tem uma grande preocupação com o tema da sustentabilidade e quer estar dentro da lei. O Ibama não tem absolutamente nada contra o agro brasileiro, é uma atividade econômica que movimenta mais de 30% do PIB brasileiro, mas tem que estar dentro da legislação – e a maioria está.
“O Ibama não tem interesse nenhum de se apropriar de patrimônio de ninguém, mas vamos ser muito duros do ponto de vista de buscar estratégias para redução do desmatamento, que está completamente fora de controle”
Está na mesa do Ibama a renovação da licença de operação da usina de Belo Monte, vencida em 2021. Ambientalistas e lideranças de comunidades da região de Altamira têm feito pressão para que as condicionantes ambientais impostas à concessionária Norte Energia sejam cumpridas antes de dar aval à usina. Já tem uma decisão? Estamos analisando todos os estudos técnicos que foram feitos. Temos um desafio enorme no caso de Belo Monte, que é estabelecer uma regra muito clara de quanto de água do Rio Xingu vai poder ser utilizada pela usina e quanto vai ter que ser deixada para garantir a vida do rio e dos ribeirinhos. Se não for possível compatibilizar os usos, a usina começa a se mostrar inviável. O entendimento do Ibama é que a melhor posição é buscar um equilíbrio. Pode ser que para isso a gente tenha que reduzir a produção de energia em alguns momentos do ano. Existem outros problemas também, muitas condicionantes da licença ambiental que não foram cumpridas até hoje e que a gente espera que o empreendedor cumpra. Vamos analisar a renovação dessa licença provavelmente até o fim do ano.
Outra discussão em andamento é a da concessão de licença para a Petrobras explorar petróleo na foz do rio Amazonas. Sabemos que o licenciamento ainda está em análise, mas o que o senhor pensa sobre? É uma área de muita turbulência e de grande sensibilidade ambiental. O Ibama tem se debruçado sobre uma série de estudos que foram apresentados até aqui, mas é um licenciamento bastante complexo e que vai demandar ainda mais estudos. Nós não temos condição nenhuma de dizer se esse licenciamento vai prosperar ou não. Tem pesca bastante intensa, muitas comunidades ribeirinhas vivem disso, qualquer vazamento de petróleo pode ir para mar aberto ou para áreas vizinhas, como a Guiana Francesa, com consequências do ponto de vista internacional. O Ibama está acostumado a licenciar petróleo, mas nesse caso específico existe um olhar especial.
Milhares de multas ambientais podem prescrever em 2023. Como o Ibama vai garantir que novos crimes ambientais serão punidos se não conseguiu concluir processos que estão em andamento? O governo passado colocou um número muito grande de multas para prescrição, o total chegava a 29 bilhões de reais. Estamos com uma força-tarefa trabalhando para evitar a prescrição dessas multas. Não vamos conseguir salvar todas, mas a maior parte delas. Estamos atuando também com outras medidas cautelares. Já embargamos 50 mil hectares de áreas desmatadas ilegalmente e começamos a colocar os embargos no sistema, que pode ser acessado pelos bancos – 5.340 embargos que haviam sido feitos não estavam lançados no sistema. Assim, os embargos também passam a ter outro efeito, que é a proibição de a pessoa que desmatou ilegalmente obter crédito. É uma medida muito dura e de aplicação imediata. Estamos retomando também a conversão das multas em projetos ambientais. Quando isso acontece, a infração se transforma em um benefício para o meio ambiente.
Uma das principais promessas de Lula é zerar o desmatamento na Amazônia. Isso é possível? Eu tenho certeza que é uma meta possível para 2030. Nós temos um caminho duro pela frente. O Ibama acaba assumindo aquele papel mais difícil, que é o de dizer não, de punir quem faz ilegalidades. Sem as florestas, torna-se impossível resolver o problema do aquecimento global, a gente precisa que as florestas sejam valorizadas. No caso do Brasil, nós temos seis biomas terrestres com altíssima riqueza biológica, além do próprio bioma marinho. A meta do desmatamento zero é possível com ações de rastreabilidade, de inteligência, de geoprocessamento, utilizando imagens de satélite e operações em terra. A floresta em pé precisa valer mais que a floresta no chão, hoje a gente tem o contrário.
Qual o principal desafio do Ibama para os próximos anos? É o desmatamento? A curtíssimo prazo, o Ibama precisa voltar a ter capacidade de trabalho. Acho que não dá para a gente enfrentar um problema desse tamanho com a estrutura que temos hoje. Por um outro lado, o Ibama é a principal agência ambiental brasileira e entre os grandes desafios obviamente está o combate ao desmatamento. Mas tem outros desafios: o licenciamento ambiental, o combate à pesca predatória, o controle da poluição, a busca incessante pela universalização do saneamento e o enfrentamento das mudanças climáticas.
“A curtíssimo prazo, o Ibama precisa voltar a ter capacidade de trabalho. Acho que não dá para a gente enfrentar um problema desse tamanho com a estrutura que temos hoje”
Vocês tem utilizado muito a frase “o Ibama voltou”. Para o senhor, o que isso significa? Eu tenho um carinho muito grande pelo Ibama porque na adolescência fui estagiário do órgão, passei a admirar e respeitar. O que a gente percebeu é que nos últimos anos o Ibama trabalhou com muitas amarras. Muitas ações estratégicas de combate ao desmatamento não foram tomadas, faltou zelo com a coisa pública, notadamente na cobrança das multas, faltou cuidado da análise da aprovação de agrotóxicos e combate às invasões em terras indígenas. Isso tudo não foi feito. Os servidores resistiram bravamente, mas o Ibama perdeu sua capacidade de trabalho. Voltamos com força total. Temos usado essa expressão inclusive para pedir que as pessoas parem de desafiar a legislação ambiental brasileira.