Voto decisivo de Celso de Mello pode ser usado a favor de Bolsonaro
Para ex-decano do STF, investigado não pode ser obrigado a cooperar com o poder público, o que inclui até mesmo faltar a depoimento, como fez o presidente
A postura do presidente Jair Bolsonaro de não comparecer a depoimento marcado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) reacendeu no meio jurídico a discussão sobre o eventual descumprimento de uma ordem judicial por parte do chefe do Executivo – e as possíveis consequências envolvidas no episódio. Por decisão do ministro Alexandre de Moraes, alçado ao posto de “inimigo da vez” do Palácio do Planalto, Bolsonaro foi intimado a depor à Polícia Federal no âmbito de um inquérito sobre o vazamento de informações sigilosas envolvendo ataque hacker ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O chefe do Executivo, no entanto, alegou que exerceu o “direito de ausência” ao não comparecer ao depoimento. A tese do mandatário ressoa no STF. O ex-decano do STF Celso de Mello, por exemplo, já deu um voto decisivo alegando que ninguém pode ser obrigado a cooperar com o Poder Público, o que incluiria até mesmo faltar a depoimentos, como fez Bolsonaro agora.
O tema foi discutido pelo Supremo em junho de 2018, quando o plenário analisou se a condução coercitiva de investigados para interrogatórios viola a Constituição. Pelo placar apertadíssimo de 6 a 5, o STF derrubou a medida, considerada um dos pilares da Operação Lava-Jato – que havia feito, dois anos antes, a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por ordem do então juiz federal Sergio Moro. O voto decisivo para derrubar a condução coercitiva veio de Celso de Mello, que impôs um dos mais duros reveses da história da Lava-Jato no STF – e deixou clara a sua posição de que um investigado não é obrigado a comparecer a interrogatórios.
“A condução coercitiva do investigado ou do réu, para efeito de interrogatório, revela-se ilegítima, eis que a pessoa exposta à persecução estatal tem o direito de não comparecer ao ato de sua própria inquirição. Ninguém pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a autoincriminação, ser constrangido a produzir prova contra si próprio ou, então, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu ‘status poenalis’”, escreveu Celso de Mello, ao longo de um voto de 31 páginas.
“Em suma: o direito ao silêncio – e o de não produzir provas contra si próprio – constitui prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer dos Poderes da República. A impossibilidade constitucional de constranger-se o indiciado ou o réu a comparecer, mediante condução coercitiva, perante a autoridade policial ou a autoridade judiciária, para fins de interrogatório, resulta não só do sistema de proteção das liberdades fundamentais, mas, também, da própria natureza jurídica de que se reveste o ato de interrogatório”, concluiu. Na época em que Celso proferiu o voto, Bolsonaro ainda era um deputado federal do baixo clero que não havia subido a rampa do Palácio do Planalto.
Para Celso de Mello, o direito de não produzir provas contra si mesmo, e o de não comparecer a interrogatórios, vale para qualquer cidadão brasileiro — seja para quem vive debaixo de uma ponte ou para quem ocupa o posto mais alto da República. Ou seja, Bolsonaro não teria descumprido ordem judicial no caso. No julgamento da condução coercitiva, Alexandre de Moraes votou a favor da medida, mas acabou derrotado. Assim como Moraes, Celso de Mello também foi duramente atacado por Bolsonaro por conta de decisões históricas, como a criminalização da homofobia e o levantamento do sigilo da tenebrosa reunião ministerial do presidente com auxiliares, marcadas por xingamentos, palavras de baixo calão e ameaças ao STF.RelacionadasPolíticaMoraes prorroga inquérito que apura interferência de Bolsonaro na PFPolíticaBolsonaro alega ‘direito de ausência’ para não depor na Polícia FederalBrasilMoraes dá 48h para Bolsonaro explicar intenção de expor técnicos da Anvisa