Maior colégio eleitoral do país, com quase um quarto dos votantes, São Paulo é, claro, um terreno estratégico para qualquer candidato ao Palácio do Planalto. Jair Bolsonaro não pensa diferente, tanto que foi o único estado no qual se envolveu diretamente na construção de uma chapa ao governo. Sem um nome viável, tirou da cartola o ministro Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura), que ainda reluta em assumir a candidatura, e convidou para disputar a única vaga ao Senado a ministra Damares Alves (da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que ainda não disse sim. O esforço do presidente por um bom desempenho nas urnas paulistas, porém, vem sendo tumultuado pela entrada em cena de um adversário inesperado, desbocado e ruidoso: o outrora aliado ex-ministro Abraham Weintraub. Ele não só promove um indesejado racha na militância bolsonarista como aborrece o presidente ao disparar críticas à gestão que integrou até junho de 2020.
O alvo principal dos ataques é a aproximação com o Centrão, considerada uma traição ao bolsonarismo-raiz, dentro da crença de que o governo abandonou a ideologia conservadora, da qual Weintraub era um dos representantes mais ativos na Esplanada. Existe ainda o ressentimento pela perda de espaço para políticos profissionais, que lotearam a máquina federal, filiaram o presidente (que foi para o PL) e tomaram conta do Orçamento. Weintraub vê na aliança com o bloco a ruína do governo. Para ilustrar, cita a princesa Cassandra que, na Ilíada, de Homero, avisa sobre a armadilha do cavalo de Troia e pede que destruam o presente dos gregos, mas ninguém lhe dá ouvidos. Para Weintraub, o cavalo é o Centrão e Troia, os valores conservadores: “Talvez eu seja a Cassandra”, diz.
Tal qual a personagem da mitologia grega, Weintraub vai distribuindo suas profecias e suas visões pelo interior de São Paulo em uma agenda digna de pré-candidato. De férias do Banco Mundial, em Washington — cargo que ganhou de consolação de Bolsonaro após ser enxotado do MEC (e para o qual não sabe se será reconduzido em outubro) —, ele está há duas semanas em uma road trip que vai incluir 42 cidades em menos de trinta dias. Nessa odisseia, é recebido por movimentos conservadores e empresários do agronegócio e participa de encontros com prefeitos, vereadores e deputados. O tour foi planejado e parcialmente custeado pela ONG Farol da Liberdade, fundada pelo ex-assessor Victor Metta e que diz defender a liberdade, os valores tradicionais, a racionalidade e o indivíduo.
Esse fogo amigo (ou seria inimigo?) vem incomodando bastante Bolsonaro e seus aliados. O ponto máximo da fervura veio quando o secretário de Cultura, Mário Frias, curtiu o post de uma seguidora que defendia a prisão do ex-ministro. Repreendido por Abraham e seu fiel escudeiro, o irmão Arthur Weintraub — ex-assessor da Presidência e que era um dos mais proeminentes e aguerridos membros do tal gabinete paralelo —, Frias aumentou ainda mais a temperatura: enfileirou vários posts nos quais alegava que os Weintraub sempre fizeram o papel de “oposição sonsa” dentro do governo. Na disputa interna, ganhou o apoio do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o único da família presidencial que tem base eleitoral em São Paulo. “Não se trata de dividir/unir a direita, mas separar o joio do trigo”, disse.
Apesar do barulho que sua movimentação vem provocando, Weintraub não tem, por ora, nem um partido para disputar o governo. Chegou a flertar com o PTB, onde tem um aliado de primeira hora, o presidente estadual da legenda, Otávio Fakhoury, empresário investigado em inquérito no STF por suspeita de incentivar ataques às instituições e à democracia. Fakhoury, no entanto, tenta conciliar os interesses do clã presidencial com todas as correntes dissidentes em São Paulo. A prioridade do dirigente e da executiva nacional do partido é viabilizar uma aliança com Bolsonaro. O PMN chegou a convidar Weintraub em novembro, mas desistiu de lançá-lo por causa da demora dele em assumir a candidatura. Outra possibilidade é o Brasil 35, antigo PMB. Uma coisa, no entanto, é certa: como só devem restar a ele siglas nanicas, Weintraub terá pouco dinheiro para a sua campanha.
Em uma sondagem recente do Datafolha, o ex-chefe do MEC aparece com 1% na corrida ao governo paulista, enquanto Tarcísio tem 7%, ambos longe do líder Fernando Haddad, do PT (28%). Na briga fratricida na direita, a tática tem sido a mesma: pôr em dúvida a candidatura do concorrente. Os apoiadores de Weintraub ressaltam que o ministro da Infraestrutura não tem domicílio eleitoral em São Paulo (é de Brasília), não cumpre tantas agendas no estado e não demonstra entusiasmo com a missão. Os governistas, por sua vez, ressaltam que o ex-titular do MEC não tem chance de se viabilizar sem o apoio do presidente. “Ele poderia ser um deputado federal, até pleitear a disputa para o Senado, mas foi com muita sede ao pote, direto a governador sem a bênção do Bolsonaro e se queimou por completo”, diz o deputado federal Capitão Augusto, do PL, sigla de Bolsonaro e futuro abrigo de Tarcísio.
Os sinais de fragmentação na direita em São Paulo já estimulam até a corrida por seu espólio. O PRTB, do vice-presidente Hamilton Mourão, está próximo de filiar Janaina Paschoal, que foi uma das estrelas do furacão bolsonarista de 2018 ao se tornar a deputada estadual mais votada da história do país. Sempre na metade do caminho entre o apoio e a crítica contra Bolsonaro, ela está magoada com o presidente, porque pretendia ser a candidata ao Senado com o seu apoio, mas essa pretensão já ruiu após o flerte com Damares. “Se dependesse só de mim, não haveria cisão. Penso ser possível conciliar os mais moderados com os mais estridentes”, afirma. Ela, no entanto, sentiu o tamanho da animosidade na direita ao propor, via Twitter, uma “união bolsonarista” que juntasse, em torno de Tarcísio ao governo e dela ao Senado, as candidaturas de Abraham (a quem chamou de “companheiro”) a deputado federal e de Arthur e do ex-ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) a estadual. “Primeiro, não sou seu companheiro. Achei a sua postura falsa e interesseira”, respondeu Weintraub. Salles foi no mesmo tom: “Primeiro: eu serei candidato a federal. Segundo: você, até onde sei, disse preferir votar em Moro do que em Bolsonaro”.
Como bem lembrou Salles, o racha em torno da eleição deste ano é mais um nas forças de direita que levaram Bolsonaro ao poder. O maior e mais evidente foi o afastamento dos lavajatistas após a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. Depois, houve o expurgo da direita radical representada pela ala olavista, nome dado aos seguidores do escritor e astrólogo Olavo de Carvalho, morto na segunda 24, após oito dias internado em um hospital da Virgínia (EUA) por causa da Covid-19. Weintraub não é a única “viúva” desse ideário, que acabou escanteado pelo Palácio do Planalto para retomar as condições mínimas de governabilidade e como condição de convivência mais pacífica com o STF. O ex-chanceler Ernesto Araújo, na live semanal ConservaTalk, no YouTube, também sugere que Bolsonaro traiu a causa. “E o que aconteceu quando o Centrão começou a dominar o governo? Fui cada vez mais isolado”, afirmou. Outro olavista que integrou o governo, Ricardo Vélez Rodríguez, antecessor de Weintraub no MEC, disse em texto no seu blog que Bolsonaro “perdeu o rumo”. O movimento reflete desapontamento que já externava o próprio Olavo. Ele reclamava que Bolsonaro não seguia conselhos e que só votaria nele de novo por “falta de alternativas”.
Inegavelmente, esse racha na direita em São Paulo cria mais um obstáculo às pretensões locais do presidente. O bolsonarismo perdeu força no estado desde 2018, quando o capitão teve 68% dos votos válidos no segundo turno contra 32% de Fernando Haddad. Hoje, o governo é considerado ruim ou péssimo por 50,5% dos paulistas e ótimo ou bom por apenas 25,5%, segundo levantamento Paraná Pesquisas feito em dezembro (veja o quadro). “Pelo fato de já terem um espaço estreito de intenção de votos, qualquer divisão já é um grande problema”, pontua o cientista político Rui Tavares Maluf, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
Weintraub, embora só tenha conseguido reunir até agora pequenas plateias em seu périplo pelo interior paulista, possui inegavelmente um trunfo: com 1,1 milhão de seguidores no Twitter e um quinhão semelhante de fãs no Facebook, ele tem bala na agulha para manter acesa a chama da confusão no campo preferido do bolsonarismo: as redes sociais. Resta saber se terá sucesso ou, como Cassandra, será ignorado.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774