Xadrez mineiro: Zema e Kalil ensaiam duelo acirrado no estado
Cobiçados pelo bolsonarismo e pelo petismo, os políticos disputam destaque em um palco decisivo de todas as eleições presidenciais desde 1989
Se há uma lição das eleições no Brasil é a de que não se pode desprezar a importância de Minas Gerais na equação que produz presidentes da República. Em todas as disputas desde a redemocratização, de Fernando Collor a Jair Bolsonaro, todos os que subiram a rampa do Palácio do Planalto venceram a batalha por ali, onde está o segundo maior colégio eleitoral do país, de 15,5 milhões de votantes. Somado àquilo que os políticos costumam chamar de “síntese do Brasil” no estado, com regiões de condições socioeconômicas distintas e, portanto, eleitorados heterogêneos, o histórico faz da montagem dos palanques locais uma tarefa delicada e fundamental. Foram os eleitores mineiros, afinal, que produziram dobradinhas insólitas como os votos “Lulécio” (Lula presidente e o tucano Aécio Neves governador em 2002 e 2006) e “Dilmasia” (a petista Dilma Rousseff ao Planalto e o então tucano Antonio Anastasia ao governo, em 2010).
As primeiras movimentações para 2022 mostram que vem aí uma nova versão do intrincado xadrez mineiro. Favoritos ao Palácio do Planalto no ano que vem, Jair Bolsonaro e Lula não têm candidatos próprios que renderiam bons palanques por lá. A disputa ao comando do estado está polarizada hoje entre o governador Romeu Zema e o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil. Eles chegaram ao poder sem experiência política anterior e a bordo de partidos pequenos (Novo e PHS), dentro de uma onda pró-outsiders. Outra coincidência é o fato de terem governos bem avaliados. Não por acaso, somando-se os índices da dupla nas pesquisas, possuem quase 70% das intenções de voto e estão empatados no primeiro e no segundo turno, de acordo como o instituto AtlasIntel (veja o quadro).
Ambos apresentam armas e números que atraem o interesse dos líderes da corrida presidencial. O prefeito, agora filiado ao gigante PSD, foi reeleito no primeiro turno em 2020 com quase 64% dos votos válidos, apoiado por oito partidos, entre eles o PP, o MDB e o PDT. Kalil manteve sua popularidade mesmo após a sua administração ter adotado medidas duras na pandemia — quase metade dos mineiros (49%) tem uma avaliação positiva da sua imagem (veja o quadro abaixo). Mas será uma briga boa. O seu adversário está numericamente até melhor — 54% — e é forte no vasto interior do estado com mais municípios no país, 853. À frente de um governo que ainda sofre com contas caóticas, Zema terá a chance de reverter esse quadro a partir do uso do dinheiro obtido em acordo com a Vale em razão do rompimento da barragem de Brumadinho, em 2019. Trata-se de uma baita carta na manga. São 37,68 bilhões de reais, sendo 11 bilhões de reais para obras de infraestrutura.
Bem colocada na corrida estadual, a dupla mineira mantém uma posição de cautela em relação ao pleito nacional. Eleito na onda bolsonarista, Zema teve relações ora próximas, ora distantes com Bolsonaro. Diante do agravamento da pandemia, passou a criticar mais abertamente a gestão do presidente. Ele esperava ter um candidato do Novo à Presidência em seu palanque, mas João Amoêdo, com quem vive às turras, desistiu. “Tem muita água para rolar, sou muito ligado a propostas, e não a pessoas, não acredito em salvador da pátria”, diz Zema. Embora busque uma distância de segurança, aliados e opositores veem como natural que ele invista em algum alinhamento ao presidente por necessitar dos votos que o elegeram. “Zema sabe que o Bolsonaro não tem o poder de atratividade de 2018. Ele tende a sinalizar certa proximidade, mas não totalmente vinculado a ele”, acredita o cientista político Malco Camargos, da PUC-MG.
Kalil adota uma política semelhante em relação a dois potenciais aliados. Diz ter maior afinidade com Ciro Gomes (PDT), mas ressalta haver uma “distância colossal” entre afinidade e apoio político. Embora já tenha declarado que não vai apoiar Bolsonaro e jogue para o colo de Zema a pecha de político colado à imagem do presidente, ele também busca se distanciar da associação a Lula. Em fevereiro, Kalil recebeu uma comissão encabeçada por Gleisi Hoffmann, presidente do PT, por Fernando Haddad (que à época era o candidato presidencial petista) e pelo ex-governador Fernando Pimentel — nenhum acordo foi anunciado. “A eleição acabou em novembro. O Lula veio à TV fazer campanha contra mim, apoiar o candidato deles”, lembra Kalil, referindo-se a Nilmário Miranda. Mágoas à parte, o núcleo duro de sua administração acha natural que o eleitorado de esquerda vote nele em um quadro de polarização com o atual governador. Políticos próximos a Lula, contudo, esperam que o prefeito baixe o tom de críticas recentes ao partido, como a cobrança de Kalil sobre os episódios de corrupção nos governos petistas. “Meu conselho ao Kalil seria para ficar quieto um tempo, não precipitar a decisão, está muito cedo e ele pode precisar de nós mais do que imagina”, diz um influente petista mineiro. Aposta-se forte nos bastidores que as espetadas de Kalil e os gestos de Lula insuflando uma candidatura petista ao governo (a do deputado federal Reginaldo Lopes) não passam de jogo de cena, à espera do momento certo do anúncio de composição entre o ex-presidente e o prefeito. Duas secretarias ligadas ao PT, a propósito, participam da gestão de Kalil (tucanos também figuram na equipe).
Fora Zema e Kalil, é difícil hoje enxergar alguma viabilidade eleitoral de uma terceira via em Minas. O senador Carlos Viana (PSD), um dos vice-líderes do governo, deve deixar o partido e trabalhar para ser candidato — segundo aliados de Bolsonaro, é visto como um “bom nome” pelo presidente, apesar de ter apenas 2,6% das intenções de voto. À frente de Minas entre 2003 e 2014, mas afetado pelos escândalos de Aécio Neves, o PSDB se aliou a Zema. Tucanos locais dizem que o partido analisa a definição do presidenciável do “centro” para decidir o que fazer. No meio político, a aposta é que o PSDB almeja a vaga de vice de Zema. Se ganhar no estado é importante para qualquer presidenciável, como mostra a história, mover as peças certas no complicado xadrez mineiro e concretizar as delicadas alianças não será tarefa fácil — nem para Bolsonaro, Lula ou para a esperada terceira via.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745