Na próxima segunda-feira, 2 de março, o Vaticano iluminará, enfim, um dos períodos mais discutidos da história do catolicismo no século XX ao abrir os arquivos do pontificado de Pio XII, o Santo Padre entre 1939 e 1958. A papelada — 16 milhões de páginas de documentos que incluem decretos, encíclicas e correspondências diplomáticas — pode vir a responder a uma pergunta incômoda: o pontífice foi realmente condescendente com o nazismo? A comunidade judaica diz que sim, e talvez com boa dose de razão, dado o silêncio que ecoava da Santa Sé. “É particularmente relevante que especialistas de institutos em Israel e nos Estados Unidos avaliem objetivamente o registro da mais terrível das épocas para reconhecer tanto as falhas quanto os valentes esforços feitos durante o período do Holocausto”, diz o rabino inglês David Rosen, diretor internacional do Comitê Judaico Americano. Para o papa Francisco, não há o que temer. “A Igreja não tem medo da história”, disse ele, ao anunciar o gesto de transparência, no ano passado.
Uma parte pequena do acervo do Arquivo Apostólico do Vaticano em torno dos anos da II Guerra já foi aberta — mas nada que permitisse um veredicto sobre a figura de Pio XII. E agora? Muito dificilmente haverá informações bombásticas, como fotos ao lado de Adolf Hitler ou troca de correspondência amistosa com o Terceiro Reich. Nas poucas vezes em que se manifestou publicamente sobre o assunto, Pio XII não pronunciou as palavras nazista e judeu. Em discurso feito em 1942 ele chegou a falar de “centenas de milhares de pessoas que, sem nenhuma culpa pessoal, às vezes por motivo de nacionalidade ou raça, estão marcadas para a morte ou a extinção gradativa”. Sabe-se, também, que pediu às igrejas italianas que abrigassem judeus quando as tropas alemãs ocuparam Roma, em 1943. Evitou, assim, que milhares fossem deportados para campos de concentração. Conventos, mosteiros e até mesmo Castel Gandolfo, a casa de verão dos papas, esconderam cerca de 6 000 judeus.
É provável, depois que o mofo tiver sido espanado das gavetas, que Pio XII seja entendido como uma autoridade atrelada às ambiguidades de seu tempo e por elas afetada — como, aliás, ocorre com o próprio Francisco. Ele foi acusado de não ter protegido como devia dois padres jesuítas de seu entorno, nas favelas de Buenos Aires, durante os anos mais sanguinários da ditadura militar na Argentina, situação mostrada com zelo no filme Dois Papas, de Fernando Meirelles. Afinal de contas, o Santo Padre, em qualquer época, é humano.
Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676