A plateia na Ópera de Sydney está só engatando a segunda marcha em suas risadas quando surge o anticlímax: a comediante anuncia que vai abandonar a comédia. No silêncio tenso, quase é possível ouvir o ranger de dentes do público. Mas a australiana Hannah Gadsby continua a acelerar nas subidas e descidas de sua montanha-russa. Passeando das origens no que chama de “cafundó da Austrália” — a ultraconservadora Ilha da Tasmânia — a tiradas sobre a arte moderna, ela faz a plateia rir de alívio, rir amarelo, rir de raiva. Hannah é uma camicase: se nas comédias de stand-up a eficiência do humorista é medida com base na velocidade do bombardeio de piadas, seu espetáculo permitiu-se o luxo de reduzir o ritmo até o suspense congelante, dar guinadas bruscas de humor ou saltar nas sombrias nuances do drama pessoal.
“A história da arte me ensinou que há dois tipos de mulher: virgem ou vagabunda. As pessoas acham que Miley Cyrus e Taylor Swift inventaram essa fronteira, mas ela já existe há milhares de anos”
Tudo isso seria estratégia francamente suicida dentro daquela arte de domar o público só com microfone e cara limpa que caracteriza o stand-up? Aqui, não: é da disposição de Hannah em abraçar riscos, ao contrário, que Nanette extrai originalidade extasiante (confira abaixo frases do espetáculo). Gravada ao vivo em janeiro, a versão em vídeo do show cômico — disponível na Netflix há coisa de um mês e meio — fez da comediante lésbica e gordinha de 40 anos o novo furacão do entretenimento mundial.
“As pessoas se sentem mais seguras com homens bravos na comédia. Quando eu faço isso, sou uma lésbica infeliz estragando a diversão. Se os homens fazem, são os reis da liberdade de expressão”
Logo no início, Hannah informa que o título Nanette não tem nada a ver com o que se ouvirá em seguida. Explica-se: ela pretendia criar seu novo stand-up com inspiração no estranho encontro que teve com uma figura de mesmo nome — a “atendente do dia” de um café chamada Nanette era uma senhora empertigada e antipática. “Ela me olhou como se eu fosse o resumo de tudo de ruim que pudesse acontecer no seu dia”, revelou a comediante em um talk show americano. Embora a tal atendente tenha sido deletada, Hannah tirou da experiência a essência de seu show: Nanette é um libelo confessional (e não raro furioso) contra a rejeição opressiva que figuras “diferentes” como ela podem enfrentar na vida — na Tasmânia, ser homossexual era crime até 1997.
A sinceridade é o trunfo que dota Nanette de estarrecedora voltagem emocional. Até o espectador mais cético, porém, logo perceberá que o espetáculo vai muito além dos clichês militantes sobre gênero e feminismo. Na verdade, uma das sacadas de Hannah é vestir a camisa de uma outsider que não se enquadra no mundo “hétero”, tampouco na comunidade LGBT. Ela desdenha a todo instante dos clamores de certa parcela do movimento por mais “conteúdo lésbico” em seus shows. “Não é suficiente eu estar no palco?”, provoca.
“Você compreende o que a autodepreciação significa para alguém que sempre existiu à margem? Não é humildade. É humilhação”
É essa postura crítica que dá a Hannah autoridade para fazer o que faz: apontar a presença pervasiva do machismo em todas as áreas, das roupinhas dos bebês à pintura cubista do espanhol Pablo Picasso. Bagagem não lhe falta: antes de ser comediante, ela diplomou-se em história da arte. É tocante o momento em que usa o holandês Vincent van Gogh (1853-1890) para desmistificar estultices sobre as doenças mentais — Hannah, aliás, é portadora do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Menos original é seu ataque contra Picasso: abraçando a visão feminista usual, ela denuncia a misoginia do maior pintor moderno. Mas até as farpas previsíveis contra o cubista se revelam úteis para o brilhante arremate de Nanette. Sem entrar em detalhes para não estragar a surpresa, digamos que Hannah amarra suas tiradas e reflexões com segredos dolorosos de sua vida.
A desconstrução não poupa as fileiras da própria comédia. É aí, mais que no conteúdo combativo, que talvez Nanette se mostre inovador. De Bill Cosby a Woody Allen, Hannah não se furta a apontar como o caldo de cultura sexista do humorismo desaguou em abuso (inclusive, claro, sexual) das mulheres. Daí a dizer que Nanette é uma anticomédia, há um evidente exagero. “Na verdade, ela não está atacando a comédia, mas dando um grito de alerta”, diz o humorista Marcelo Mansfield. O espetáculo questiona alicerces do gênero — como expoente de uma minoria, ela se nega a se submeter ao humor autodepreciativo. “Não é humildade. É humilhação”, afirma. Ao mesmo tempo, contudo, Nanette é a prova de que o stand-up ainda pulsa — e tem energia para se reinventar.
“Adoro que me confundam com um homem, pois, por alguns momentos, a vida fica muito mais fácil. Viro o padrão de normal, rei dos humanos. Sou um homem branco hétero”
Os momentos mais perturbadores são aqueles em que ela expõe a impossibilidade de atacar com propriedade questões tão sérias por meio da comédia — cujo mecanismo para fazer rir serviria para extravasar, mas não aprofundar os traumas sociais. Por isso a decisão de abandonar a comédia. Hannah entrou no ramo por acaso: ela ganhava a vida plantando árvores para reflorestamento, mas foi convencida a se inscrever em um concurso para comediantes após quebrar o pulso. O fato de hoje conseguir tratar de coisas de tamanho alcance e atualidade, e ainda deixar a plateia mesmerizada por uma hora a fio, só torna mais impactante sua decisão de se aposentar. Mas será? “Eu falava a sério. Todo mundo, porém, tem direito a mudar de ideia”, declarou ela à revista americana Variety. Volta, Grande Gadsby!
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593